Conhecendo as Juízas Federais #18 – Salise Monteiro

    O projeto “Conhecendo as Juízas Federais”, da Ajufe e Comissão AJUFE Mulheres, dá continuidade ao capítulo especial que destaca a atuação das magistradas federais e o que mudou em suas rotinas durante o período de isolamento social, provocado pela Covid-19. 

    A convidada desta edição é a desembargadora federal Salise Monteiro Sanchotene, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que começou a carreira em 1993, como juíza federal substituta na então 8ª Vara Federal de Porto Alegre/RS, especializada em Direito Criminal. 

    Ao longo da entrevista, a desembargadora falou sobre os desafios inerentes à profissão e também os preconceitos sofridos em razão da pouca idade e de gênero. “Era comum me perguntarem em audiência, de forma intimidatória, que idade eu tinha e se eu já havia trabalhado antes”. 

    Sobre a pandemia, Salise Monteiro destacou que “é natural que a magistrada sinta uma sobrecarga ao tentar conciliar a atividade profissional com a acadêmica e a vida familiar", [já que] "a pandemia, sem dúvida, foi um divisor de águas em nossas vidas pessoais e profissionais". 

    Leia abaixo a entrevista completa!



    1) Onde a senhora começou e exerceu a sua jurisdição?

    Iniciei a jurisdição como juíza federal substituta em setembro de 1993, na então 8ª Vara Federal de Porto Alegre/RS, especializada em Direito Criminal. Fui promovida a titular e permaneci por 23 anos como Juíza Federal na mesma vara criminal em que iniciei na magistratura, até ser promovida a Desembargadora do TRF da 4ª Região, em maio de 2016.

    Sou bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do RS (1988), possuo especialização em Direito Penal pelo Centro de Estudos Judiciários/Conselho da Justiça Federal, em convênio com a UnB (1998) e doutorado em Direito Público e Filosofia Jurídica pela Universidad Autónoma de Madrid (2017).

    posse 1993 assinatura termo

    2) Quais foram as suas atuações mais relevantes?

    Ao longo da carreira aceitei exercer outras funções que, inobstante a dificuldade experimentada para conciliar com a situação familiar, muito me orgulham. Assim, fui Diretora do Foro da Seção Judiciária do RS (de junho/2003 a junho/2005), juíza auxiliar do Gabinete Extraordinário de Assuntos Institucionais da Presidência do STF, em Brasília/DF (de abril/2007 a julho/2008), juíza auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, em Brasília/DF (de setembro/2008 a setembro/2010) e assessora da presidência da Comissão de Juristas formada com a finalidade de elaborar anteprojeto de Código Penal (de novembro/2011 a maio/2012).

    Em 1998, na jurisdição criminal, decretei a prisão preventiva de um réu acusado de sonegação fiscal e evasão de divisas. Houve muita repercussão à época porque não era usual haver decreto de prisão cautelar em crimes de colarinho branco, em especial por sonegação fiscal. Ademais, a prisão foi mantida em todas as instâncias (TRF, STJ e STF), de forma a afirmar que a medida cautelar extrema também poderia ser aplicada a essa espécie de criminalidade.

    3) Quais as dificuldades que a senhora já enfrentou? Houve alguma dificuldade ou agravamento especial na profissão por ser mulher?

    À época do concurso, havia uma entrevista com a banca examinadora antes de ter início a prova oral - que foi proibida décadas depois pelo CNJ. Nessa entrevista, a todas as mulheres casadas que fariam a prova oral, houve pergunta de um dos examinadores sobre como seria a reação do cônjuge se, uma vez ingressando na carreira, fôssemos designadas para jurisdicionar vara em subseção de outro Estado, distinto daquele em que o núcleo familiar residia. A nenhum dos homens casados essa pergunta foi realizada, embora muitas esposas/companheiras desses candidatos também exercessem profissões independentes. Foi geral, entre as mulheres, o sentimento de intimidação pela circunstância de isso ocorrer momentos antes do exame oral, quando os candidatos já estão emocionalmente fragilizados. Diria que foi a primeira vez, no âmbito profissional, que senti um tratamento diferenciado por ser mulher.

    Já na jurisdição, enfrentei dificuldades com os advogados criminais que atuavam junto à vara – todos eram muito antigos (era a década de 1990) e eu então contava com 26 anos. Era comum me perguntarem em audiência, de forma intimidatória, que idade eu tinha e se eu já havia trabalhado antes (advoguei um ano e fui servidora pública na justiça estadual por 3 anos antes de assumir a magistratura). As turmas do 3º e do 4º concurso possuíam juízes muito novos, o que não era comum na justiça federal da época e, a par da juventude da maioria, entre 27 aprovados éramos apenas 6 mulheres. 

    Julgamento 7aTurma TRF4

    4) Como a senhora avalia a pequena proporção de juízas exercendo a jurisdição em varas criminais? Acredita que mulheres enfrentam maiores dificuldades para atuar nesta seara?

    Não conheço a estatística relativa ao número de mulheres que são titulares de varas criminais, contudo, destaco que todas as que conheço nessa atuação são muito realizadas com a jurisdição que exercem e não trocariam por outro ramo do Direito. Seguramente o exercício da jurisdição criminal exige coragem, muita segurança para conduzir audiências tensas e prolongadas, bem como preparo emocional para suportar as conseqüências da repercussão de grandes. As juízas criminais que conheço reúnem todos esses atributos. Talvez o difícil seja conciliar a atuação profissional com a privacidade que a vida familiar enseja, pois não é raro que um determinado caso em julgamento projete a vida da magistrada na mídia, abalando sobremaneira a tranquilidade familiar. Conheço algumas colegas que deixaram a jurisdição criminal para levar uma vida fora dos holofotes e das pressões que os grandes casos atraem quanto à decretação de medidas urgentes, como prisões e apreensão de bens e valores dos investigados.

    Quando eu tinha 4 anos de carreira, encontrava-se sob minha jurisdição um grande tráfico de anfetaminas, que envolvia pessoas muito bem relacionadas de um Estado do centro do país. Em razão da prisão em flagrante decretada, recebi ameaças no telefone de minha casa e também na sala de audiências, após o término do ato. Isso fez minha rotina se alterar um pouco, pois minha filha tinha um ano de idade e tive que deixar de conduzir meu veículo sozinha; passei a ser acompanhada por seguranças da Justiça Federal no trajeto casa/trabalho/casa, até que o processo fosse  julgado e remetido com apelação ao TRF, o que só aconteceu quase um ano depois.

    5) O ano de 2020 foi marcado pelo início da pandemia de Covid-19, acarretando e acelerando diversas alterações na rotina de trabalho em todas áreas. Nesse contexto, quais os desafios que a senhora enfrentou para se adaptar a essa nova realidade, seja na rotina doméstica ou na prestação jurisdicional?

    A pandemia, sem dúvida, foi um divisor de águas em nossas vidas pessoais e profissionais. O primeiro desafio foi organizar os espaços físicos da casa, com móveis ergonômicos adequados para longos períodos de trabalho e de forma que cada membro do grupo familiar tivesse o seu local, independente dos demais. Em seguida, vi que era necessário realizar reuniões periódicas com os servidores e estagiários do gabinete, para tentar manter o vínculo de todos com a unidade, mas também para possibilitar debates sobre os processos em vias de julgamento e para esclarecer dúvidas. Por isso, ainda em abril de 2020 fiz uma assinatura de conta no zoom, sem limite de duração, porque percebi que precisava ter essa ferramenta disponível em tempo integral, também para atendimento dos advogados e para realizar reuniões familiares com meus pais.

    Desde então, atendo advogados diariamente pelo zoom, com hora marcada.

    O mais difícil foi instituir uma disciplina própria para não permanecer o dia todo trabalhando, o que passou a ser tentador no contexto de isolamento social. Portanto, fazer pausas em intervalos regulares e fazer caminhadas diariamente passaram a ser objeto de muito controle de minha parte.

    Do ponto de vista do trabalho, a produtividade de todo o gabinete aumentou. Mas o que mais tem me preocupado é, por um lado, manter o ânimo dos servidores e, por outro, zelar por sua saúde física e mental. Há um enorme desafio de motivar a equipe nesse contexto de adoecimento e perda de familiares e amigos. Fazemos reuniões semanais, em dia e hora fixos, para inicialmente conversar sobre como estamos e depois debater as questões jurídicas. Foi a forma como encontrei de amenizar um pouco o distanciamento social e lembrar a todos que fazemos parte de uma equipe.

    Posse Desembargadora Salise

    6) O que é ser juíza federal, para a senhora?

    Como tantas outras profissões, a magistratura federal é complexa, pois envolve muitos saberes que precisam ser dominados – que transcendem conhecer leis e doutrinas para bem decidir -, impele a um aperfeiçoamento constante diante dos desafios que a evolução social e tecnológica apresenta e exige muita coragem e firmeza, como atributos essenciais para tomar decisões, por vezes impopulares e sujeitas a críticas imediatas nas redes sociais e na mídia.

    Ser juíza federal, na minha visão, é exercer uma profissão relevante do ponto de vista social, que impacta significativamente na vida das pessoas e da sociedade em geral e que por isso, deve ser desempenhada de forma ética, responsável e empática.

    7) quais as suas aspirações enquanto magistrada federal?

    Tive a grata satisfação de conhecer e trabalhar com mulheres inspiradoras ao longo da carreira, como a Min. Ellen Gracie e a Desembargadora Federal Marga Tessler, ambas sempre muito preocupadas com a ampliação da participação das mulheres na carreira e nos postos de liderança. Também incorporei essa visão e há mais de ano faço parte de um trabalho de Mentoria para Magistradas, instituído pela Corregedoria do TRF da 4ª Região, que tem como objetivo possibilitar o diálogo entre magistradas mais experientes e aquelas mais novas na profissão, de forma a auxiliar nos desafios enfrentados na carreira e estimular oportunidades de crescimento.

    Diante disso, tenho a aspiração de ver esse trabalho consolidado no Tribunal que integro e em muitos outros, de forma que as juízas novas na carreira sintam-se estimuladas a aceitar cargos de gestão, a integrar bancas de concursos, a prosseguir estudos, independentemente de serem mães ou companheiras de alguém.

    E é claro, gostaria de ver mais mulheres integrando os Tribunais Regionais Federais e os Tribunais Superiores, porque a estatística revela que a participação feminina nos Tribunais hoje é pífia, se levarmos em conta o aumento gradual do número de mulheres na base da carreira na última década.


    8) como faz para conciliar as atividades profissional, acadêmica e a vida pessoal e familiar?

    É natural que a magistrada sinta uma sobrecarga ao tentar conciliar a atividade profissional com a acadêmica e a vida familiar, mas afirmo que é absolutamente possível encontrar o ponto de equilíbrio. Evidentemente, necessitamos nos empenhar em constituir núcleos familiares baseados no respeito e efetivamente colaborativos. Também é fundamental, ao longo dessa caminhada, edificar boas assessorias nas unidades jurisdicionais, mas principalmente, estabelecer disciplina atribuindo pesos equitativos a todas essas áreas, de forma que nenhuma prevaleça absolutamente sobre a outra.

    A realização pessoal, penso, está na tentativa de obtenção de êxito em todos os segmentos. É certo que nessa busca, muitas vezes precisamos focar mais em uma particularidade, como ocorre no momento da maternidade. Porém, em que pese fundamental e intensa, essa experiência não pode sufocar as demais necessidades que possuímos, de sermos boas profissionais, de completarmos nossos estudos acadêmicos e de exercitarmos os espaços de convivência com amigos e familiares.

    Foto entrega relatório Senado Federal
    9) Que conselho a senhora daria às mulheres que sonham com a carreira da magistratura federal?

    É uma carreira árdua, que exige bastante em termos de atualização permanente e dedicação constante, mas que ao mesmo tempo nos proporciona muitas realizações. Graças às magistradas que nos antecederam ainda ao tempo do concurso nacional, hoje temos condições igualitárias de acesso e nossas singularidades são respeitadas institucionalmente. Penso que não devemos nos furtar de ocupar espaços na instituição. Assim, para quem deseja seguir carreira, afirmo que é fundamental participar ativamente de grupos de trabalho criados para o aprimoramento da Justiça Federal, aceitar convocações para realizar outras atividades junto às Corregedorias ou assessoramento nos Tribunais superiores, porque somente assim consolidaremos espaço para que outras magistradas possam trilhar esses caminhos. 

    Se eu tivesse oportunidade de voltar no tempo, percorreria a mesma jornada, pois me considero plenamente realizada na profissão que abracei.

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