Política de litigante único na reforma tributária

    Artigo escrito pelos ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Paulo Sérgio Domingues (ex-presidente da Ajufe) e Regina Helena Costa, além do juiz instrutor no STJ, Daniel Marchionatti, para o Conjur.

     

    Este artigo busca trilhar um caminho não explorado para tratar da litigância judicial dos novos tributos sobre o consumo: a política de litigante único.

    Caminhamos para o início da vigência da reforma tributária, sob o signo da descrição, por Alfredo Augusto Becker, de um distante passado, no qual “o Sistema Tributário brasileiro era estruturado de acordo com a forma e a cor das estampilhas. Havia estampilhas federais, estaduais e municipais e as diretrizes da política fiscal concentravam-se em disciplinar — arduamente a hierarquia dos formatos das estampilhas e a tropicalidade das suas cores” [1].

    O carnaval da atual reforma é a multiplicação de relações entre credores e contribuintes. A competência para os novos tributos é partilhada de forma vertical e horizontal. Adotada a tributação no destino, a empresa deverá IBS ao município e ao estado do local da entrega da mercadoria ou da prestação do serviço (artigo 11 da Lei Complementar n. 214/2025), em cada uma de suas operações. Potencialmente, será contribuinte em todos os municípios, estados e Distrito Federal. Além de tudo, a irmã gêmea, a CBS, será devida à União, sobre as mesmas hipóteses imponíveis.

    Adotada a regra geral sobre legitimação para estar em juízo (artigo 17 do CPC), as discussões sairão do domicílio do devedor e se espraiarão pelo território nacional, envolvendo múltiplas pessoas jurídicas de direito público. Cada município poderá cobrar o quinhão que lhe cabe do total do IBS de um contribuinte, multiplicando-se a demanda em diversos foros. Uma ação de iniciativa do contribuinte, buscando a declaração de que sua atividade econômica se enquadra em determinado tratamento mais favorável, exigirá a formação de um litisconsórcio passivo entre 5.598 pessoas jurídicas de direito público — a União, os 26 estados, o DF e os 5.570 municípios.

    A solução do problema não passa pela revisão das estruturas jurisdicionais, mas pela concentração da relação fisco-contribuinte. É a diluição da relação tributária, que deixa de ser entre o fisco e os contribuintes domiciliados em seu território para se tornar universal, que cria o risco de multiplicação de processos. A multiplicação de relações entre pessoas políticas e contribuintes deve ser revertida por uma simplificação da representação dos interesses fazendários em juízo.  A criação de novas estruturas judiciais seria apenas um paliativo.

    A política de litigante judicial único é o meio para simplificar a relação fisco-contribuinte no âmbito do processo. Ela consiste em estabelecer que apenas um dos entes da Federação — ou a União, ou o estado, ou o município de domicílio do contribuinte — representará os interesses do fisco, tanto para a cobrança da dívida ativa quanto para a defesa nas ações antiexacionais. Transporta, para o âmbito do processo judicial, as metas da reforma tributária: “simplificar radicalmente o sistema tributário — com a consequente redução do contencioso tributário e do custo burocrático”, e, em consequência, produzir “um significativo aumento da produtividade”, sem “reduzir a autonomia” das pessoas políticas [2].

    Trata-se de legitimação simultaneamente ordinária e extraordinária. Quando estiver em juízo, cada ente representará a si próprio, como credor ou devedor do tributo (legitimação ordinária), mas também a própria Federação — União, os demais estados e os demais municípios (legitimação extraordinária).

    A política de litigante único atua em dupla direção, definindo o nível da Federação (aspecto vertical) e repartindo territorialmente (aspecto horizontal) a representação do IBS e da CBS em juízo. Ou seja, não apenas se deixa de litigar nos três níveis — com União, estado e município —, mas também se elege um único estado ou município, para estabelecer o relacionamento judicial com o contribuinte. O critério espacial respeita o melhor interesse do contribuinte — estado ou município de seu domicílio.

    A integração da cobrança dos novos tributos está contemplada na reforma tributária. A implementação de soluções integradas para a administração e cobrança do IBS e da CBS, incluindo a integração do contencioso administrativo (artigo 156-B, §§ 7º e 8º), bem como o compartilhamento de informações, a harmonização de normas, interpretações, obrigações acessórias e procedimentos (artigo 156-B, § 6º), foram incluídas no texto constitucional.

    A Lei Complementar 214/2025 detalhou essa integração, determinando que o Comitê Gestor do IBS, a Receita Federal do Brasil e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional atuarão no sentido do cumprimento dos comandos constitucionais, por meio do Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias e do Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias (artigos 318 e 319).

    Mais importante ainda, a LC 214/2025 previu a implementação de soluções integradas para a administração e cobrança do IBS e da CBS pelo Comitê Gestor, a Receita e a PGFN (artigo 480, § 3º), e, concretamente, possibilitou a celebração de convênio para delegação recíproca da atividade de fiscalização em processos de pequeno valor (artigo 326).

    Tudo isso significa dizer que já há no ordenamento jurídico a previsão de que a fiscalização, a administração, o contencioso administrativo e a cobrança judicial do IBS e da CBS serão realizadas uma única vez, mediante atividades de cooperação e delegação recíproca de atribuições entre os sujeitos ativos. Não é preciso muito esforço para se concluir que o trabalho conjunto trará uniformidade de entendimento entre os municípios, entre os estados e entre estes e a União, produzindo maior segurança jurídica aos contribuintes e diminuindo a litigância judicial.

    Avançar no sentido da implementação da judicialização única que alcance os dois tributos, tanto para a cobrança quanto para as ações antiexacionais, é uma obrigação.

    Para isso, basta que se estabeleça o critério a ser seguido para a determinação da pessoa jurídica de direito público que executará o crédito tributário (ou será demandado pelo contribuinte). Duas ordens de indicadores servem a esse propósito:

    o porte do devedor e o valor do crédito tributário. Esses critérios podem ser utilizados em conjunto, ou separadamente.

    A ideia é que as empresas grandes litiguem contra a União; as empresas médias, contra o estado de seu domicílio, e as micro e pequenas empresas e pessoas físicas, contra o município de seu domicílio. Assim, para obter a declaração judicial de que sua atividade econômica está em situação tributária mais favorável, o contribuinte precisaria propor ação contra uma pessoa política apenas. Da mesma forma, o ente de relacionamento promoveria todas as execuções contra o devedor — um município poderia cobrar de uma microempresa toda a dívida tributária, seja com a União, com todos os estados e com todos os municípios, por exemplo.

    O valor do crédito tributário é outro critério para a determinação da legitimidade. O montante do crédito tributário determinará, dentro da delegação recíproca prevista na LC 214/2025, qual pessoa jurídica de direito público efetuará a cobrança judicial (ou será demandado pelo contribuinte). As ações sobre créditos tributários de maior valor, ainda que movidas por contribuinte de menor porte, devem envolver uma esfera mais elevada da Federação. E, ao contrário, as ações de pequena monta, ainda que tenham como parte contribuintes de maior porte, podem ser tratadas pelo nível mais próxima.

    O critério do valor do bem discutido em juízo já é utilizado com sucesso em outras situações. Basta lembrar as ações judiciais que envolvem o tema do fornecimento de medicamentos pelo Poder Público, que durante anos trouxeram dificuldades de toda ordem, graças à responsabilidade compartilhada na gestão do SUS. A solução veio a ser encontrada e sedimentada com a fixação da tese do Tema 1.234 pelo Supremo Tribunal Federal, com um inédito acordo entre municípios, estados e União. Por esse acordo, as ações sobre medicamentos registrados na Anvisa mas que não estão na lista do SUS, serão propostas na Justiça Estadual se o valor anual do medicamento for igual ou superior a 210 salários mínimos. Caso o valor seja superior, a ação será julgada na Justiça Federal.

    A questão do valor a ser adotado como limite para a definição de qual sujeito ativo fará a cobrança judicial do crédito tributário depende de mero acertamento e pode ser baseada no que já é ordinariamente utilizado: basta recordar que a Fazenda Nacional já não ajuíza ações com valor inferior a R$ 20 mil, valor este que pode chegar a R$ 1 milhão em caso de dificuldade para a localização de bens [3]; que o CNJ recomendou, em 2024, a extinção de execuções fiscais de valor inferior a R$ 10 mil  sem movimentação útil há mais de um ano [4]; e que diversos estados e municípios já editaram leis em igual sentido. Portanto, é suficiente a definição de um valor que preserve o que já vem sendo praticado.
     

    A repartição das receitas obtidas nas ações judiciais demanda simples cumprimento do que já está previsto constitucionalmente. O credor que promove a execução não ficará com a totalidade do valor arrecadado – defenderá, em nome próprio, o interesse de todos os credores. Como incentivo para agir — além de seu próprio crédito —, haverá os honorários e os encargos que incidem sobre o valor do débito executado. E, para impedir que a leniência fiscal seja usada como arma de concorrência fiscal, pode-se prever uma legitimação supletiva dos demais credores.

    Do mesmo modo, preservam-se as competências da Justiça Federal e da Justiça Estadual para o julgamento dos tributos, assegurando o pacto federativo nas ações tributárias. Nas ações em que a União for parte, a competência será da Justiça Federal (artigo 109, I, da Constituição); nas demais, dos juízes de direito.

    Respeitar as competências dos ramos de Justiça não significa anuir com decisões judiciais conflitantes. A aplicação do direito federal pelos Tribunais de Justiça é uma característica da nossa Federação, e ao Superior Tribunal de Justiça cabe uniformizar a interpretação das normas federais entre os tribunais. O enfrentamento às decisões judiciais dissonantes e a preocupação com desequilíbrios e iniquidades entre jurisdicionados são o cerne das reformas da nossa legislação processual. Os precedentes obrigatórios e a possibilidade de suspensão de tutelas de urgência contra a Fazenda Pública cumprem papel relevante nesse cenário.

    De outro lado, a criação de órgãos jurisdicionais compartilhados apenas incrementaria a complexidade do sistema judicial — haveria mais uma Corte para divergir. Tribunais não nos faltam — temos 92. O reforço do papel uniformizador das instâncias de uniformização é o caminho a ser trilhado.

    Além disso, a reforma traz a esperança de uma redução da litigância judicial tributária. A integração do contencioso administrativo já comentada acima trará maior segurança jurídica às partes e diminuirá as interpretações diferentes entre os municípios, os estados e a União. A própria forma de cobrança estabelecida para IBS e CBS, após a regulamentação pela LC 214/2025, permite vislumbrar uma maior segurança — incidência sobre a supply chain e o alvissareiro fim da guerra fiscal entre estados, por exemplo.
     
    A opção que preconizamos é a mais simples, dentre todas as alternativas cogitadas até o momento. O contribuinte litigará em seu domicílio, contra apenas uma pessoa política. Estados e municípios também se beneficiarão de litigar em suas sedes. A União não precisará se preocupar com créditos de pequena monta. A Justiça se beneficiará da concentração dos créditos de diversos credores em um só processo. Aproveitam-se as estruturas já existentes, procuradorias e órgãos da Justiça Federal e dos Tribunais de Justiça, sem criar novos e órgãos e sem custo algum.
    Basta, para que isso seja adotado, um ato administrativo. A Constituição já determina a implementação de “soluções integradas” para a cobrança de CBS e IBS (artigo 156-B, § 7º), no que é secundada pela legislação de criação dos tributos (artigo 480, § 3º, da LC 214/2025). Assim, um ato conjunto seria suficiente para pôr em prática a tal política simplificadora. Se o Congresso resolver tomar a matéria em suas mãos e editar lei, melhor ainda.
     

    Para dar concretude ao que estamos preconizando, oferecemos um primeiro esboço do ato normativo ou convênio que suportaria a sugestão:

    Art. 1º As ações judiciais relativas ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de que trata o art. 156-A da Constituição Federal, e à Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS), de que trata o inciso V do caput do art. 195 da Constituição Federal, observarão o disposto neste ato normativo.
    Art. 2º A ação judicial impugnando a exação do IBS e da CBS será ajuizada em face:
    I – da União, pelo contribuinte sujeito ao regime regular e tributado pelo imposto de renda com base no lucro real;
    II – do Estado de seu domicílio, pelo contribuinte sujeito ao regime regular e tributado pelo imposto de renda com base no lucro presumido ou arbitrado;
    III – do Município de seu domicílio, pelo contribuinte optante pelo Simples Nacional ou pessoa física;
    IV – do Distrito Federal, pelo contribuinte nele domiciliado enquadrado nas hipóteses dos incisos II e III.
    1º As ações anulatórias de crédito tributário de elevado valor serão ajuizadas em face da União.
    2º As ações anulatórias de crédito tributário de pequeno valor serão ajuizadas em face do Município de domicílio do contribuinte.
    3º Os mandados de segurança serão impetrados em face da autoridade apontada como coatora, intimando-se o órgão de representação judicial da pessoa jurídica interessada e, se diverso, o representante judicial da pessoa jurídica mencionado no caput.
    4º Excetuam-se do disposto neste artigo as ações:
    I – anulatórias de crédito tributário decorrente de auto de infração lavrado exclusivamente em face de descumprimento de obrigação acessória;
    II – declaratórias ou anulatórias de crédito tributário que discutam apenas a alíquota e aspectos formais do lançamento.
    Art. 3º A execução fiscal do IBS e da CBS será proposta:
    I – pela União, em face do contribuinte sujeito ao regime regular e tributado pelo imposto de renda com base no lucro real;
    II – pelo Estado do domicílio do contribuinte sujeito ao regime regular e tributado pelo imposto de renda com base no lucro presumido ou arbitrado;
    III – pelo Município do domicílio do contribuinte optante pelo Simples Nacional ou pessoa física.
    1º A inscrição em dívida ativa do IBS e da CBS será feita pelo órgão de representação judicial do credor.
    2º O exequente certificará as inscrições em dívida ativa de todos os credores.
    3º As execuções de crédito tributário de elevado valor serão ajuizadas pela União.
    4º As execuções de crédito tributário de pequeno valor serão ajuizadas pelo Município de domicílio do devedor.
    5º Qualquer credor poderá promover a execução da totalidade dos créditos tributários, caso não promovida, no prazo de 180 dias, contados da inscrição em dívida ativa.
    Art. 4º A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e os órgãos de representação judicial dos Estados e dos Municípios prestarão auxílio mútuo, em relação aos tributos de sua competência.
    Parágrafo único. Não haverá litisconsórcio entre pessoas jurídicas de direito público.
    Art. 5º As definições de crédito tributário de valor elevado e de pequeno valor serão dadas por ato normativo próprio.
    Art. 6º Este ato normativo entra em vigor na data de sua publicação.

    Nós, os membros do Grupo de Trabalho do STJ que estudou os impactos processuais da reforma tributária no Poder Judiciário, acreditamos que este é o caminho a ser trilhado. Uma solução interessante para os contribuintes e para o fisco, que dispensa a criação de novas estruturas, que não aumenta despesa, e que dá eficiência ao processo judicial.

     

     

     

     

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    [1] BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval Tributário (1928). 2. ed. São Paulo: Lejus, 1999. p. 13.

    [2] Exposição de motivos da Emenda Constitucional 132/2023.

    [3] Portaria MF 75, de 22 de março de 2012; Portaria PGFN 33, de 8 de fevereiro de 2018.

    [4] Resolução Nº 547 de 22/02/2024.

     

    Autores:

    • é ministra do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Doutora e livre-docente pela PUC-SP, onde é professora da graduação e da pós-graduação.

    • ex-presidente da Ajufe e é ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Mestre pela Johann Wolfgang Goethe Universität.

    • é juiz federal. Juiz Instrutor no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Doutor pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Mestre pela UFRGS.

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