Animais têm direitos e podem demandá-los em juízo

    Crédito: Pixabay

    1. Tenham em mente um animal de estimação, vítima de violência e maus-tratos.

    Imaginem que o animal, em função das agressões, necessite de tratamento de saúde e de  medicamentos, sem os quais não poderá restabelecer a locomoção e o seu comportamento natural.

    Permitam-se ir além e cogitar que o responsável pelo animal não tem condições financeiras para pagar essas despesas médico-veterinárias. Diante desse quadro fático, qual solução jurídica seria indicada? O que fazer?

    O presente ensaio pretende esboçar algumas possibilidades de resposta a essas rotineiras indagações.

    Mais do que isso, a reflexão pretende trazer uma nova solução, baseada no ramo jurídico que dá título a este trabalho, o qual, pela novidade que oferece, vem despertando cada vez interesse na academia e já se apresenta como base para vários julgados, inclusive no Supremo Tribunal Federal.

    Mas, vamos por partes: das soluções mais tradicionais para as mais contemporâneas.

    2. É bem provável que a primeira solução aventada seja pelo Direito Penal. Maltratar animais caracteriza o crime do art. 32 da Lei 9.605/1998. No entanto, pela cominação de uma pena reduzida, esse crime é enquadrado como infração penal de menor potencialidade ofensiva e, por isso, submetido às branduras da Lei 9.099/1995.

    Mesmo assim, o responsável teria a possibilidade de obter uma composição dos danos civis, prevista nos arts. 72 a 74 da Lei 9.099/1995 e, nesse caso, imposta pelo art. 27 da Lei 9.605/1998. Mas, como não se pode prever quando a audiência preliminar vai ser realizada – e as pautas costumam ser superlotadas, com audiências marcadas para datas longínquas  – ficaria impossível garantir que essa composição atendesse à situação de urgência. Essa possibilidade reparatória é mais aplicável quando o responsável já arcou com as despesas médico-veterinárias urgentes do animal, o que, como visto na hipótese, não ocorreu.

    3. Diante da ineficiência do sistema penal para atender ao problema, qualquer advogado, certamente, pouco titubearia em ajuizar uma ação de reparação de danos contra o agressor do animal, com pedido de tutela provisória de urgência, fundada na responsabilidade civil, considerando os danos provocados à propriedade semovente.

    Esse costuma ser o caminho baseado nas concepções tradicionais do Código Civil, pelo qual, ainda hoje, os animais são considerados bens semoventes.

    Mas, em caso de concessão da liminar ou da procedência do pedido reparatório, o que garante que o “proprietário” vai aplicar o valor recebido para o tratamento do animal? Não há previsão de prestação de contas, afinal, o dinheiro recebido, seja por meio da interlocutória, seja por meio da sentença, pertence ao “dono” do animal, autor da demanda, lesado patrimonial e moralmente, pela conduta ilícita do terceiro. Nesse caso, o animal teria que contar com a compaixão ou a sensibilidade do seu dono.

    Nada impõe que a indenização recebida reverta em prol da vítima direta da violência.

    Evidentemente, se o dono indenizado deixar o seu animal sofrer sem tratamento, isso também poderá caracterizar o crime de maus-tratos, previsto no art. 32 da Lei 9.605/1998, mas, como se pode intuir, essa ameaça penal oferece pouco desestímulo às práticas criminosas.

    4. Uma terceira possibilidade seria recorrer ao Ministério Público, ou se amparar por uma ONG de proteção animal, para conseguir, por meio de uma ação civil pública ambiental (art. 1º, I, Lei 7.347/1985), a tutela provisória e a proteção jurisdicional do animal, como elemento integrante da fauna e, consequentemente, como fator indispensável ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de visa (art. 225, caput, CF).

    Ainda que essa possibilidade seja factível, não parece que o caso se trate, efetivamente, de um direito difuso, de titularidade indeterminada, ou que envolva o meio ambiente ou que se coloque em risco o equilíbrio ecológico, para se legitimar a atuação desses substitutos processuais.

    Há um animal, individualmente considerado, que foi a vítima dos maus-tratos, e há um responsável humano, também individualmente considerado, que pode arguir danos ao seu patrimônio pessoal (o animal como bem semovente componente do seu acervo patrimonial).

    Portanto, essa opção não é totalmente satisfatória.

    5. Pela insuficiência, teórica e prática, das soluções apresentadas, é importante dar notícia e divulgação a um novíssimo ramo jurídico, que cada vez mais tem fornecido novos parâmetros (e novas soluções) para a tutela jurídica dos animais.

    Trata-se do Direito Animal.

    Do ponto vista do direito positivo, o Direito Animal pode ser conceituado como “conjunto de regras e princípios que estabelece os direitos fundamentais dos animais não-humanos, considerados em si mesmos, independentemente da sua função ambiental ou ecológica.” (ATAIDE JUNIOR, 2018, p. 50).

    Segundo o Direito Animal, o titular do direito à reparação de danos será o próprio animal: ele foi a vítima da violência e do sofrimento. Os danos físicos e os extrapatrimoniais foram por ele diretamente experimentados, pois é um ser dotado de consciência, não uma coisa ou um objeto inanimado.

    Justamente porque os animais são seres conscientes e dotados da capacidade de sofrer (a senciência) é que a Constituição Federal brasileira proíbe, expressamente, quaisquer práticas cruéis contra animais (art. 225, §1º, VII).

    Ao valorar positivamente a consciência e a senciência animal, proibindo as práticas cruéis, a Constituição brasileira passou a considerar os animais não-humanos como seres importantes por si próprios, dotados de valor intrínseco, como fins em si mesmos, ou seja, passou a reconhecer, implicitamente, a dignidade animal (SILVA, 2014, p. 100-103; SARLET; FENSTERSEIFER, 2017, p. 90-114; MAROTTA, 2019, p. 105-116).

    Essa interpretação constitucional sobre a dignidade animal foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4983-CE (a ADI da vaquejada), em 2016.

    Segundo a Ministra Rosa Weber,

    a Constituição, no seu artigo 225, § 1º, VII, acompanha o nível de esclarecimento alcançado pela humanidade no sentido de superação da limitação antropocêntrica que coloca o homem no centro de tudo e todo o resto como instrumento a seu serviço, em prol do reconhecimento de que os animais possuem uma dignidade própria que deve ser respeitada. (grifo nosso).

    Como uma das principais consequências do reconhecimento constitucional da dignidade animal, o Código Civil brasileiro, enquanto lei ordinária, precisa ser relido, conforme a Constituição, para afastar qualquer interpretação que resulte em atribuir aos animais o status jurídico de coisabem móvel ou bem semovente (ATAIDE JUNIOR, 2020, p. 123).

    Ora, se os animais têm dignidade própria, definida a partir da Constituição Federal, é possível desguarnecê-los de um catálogo mínimo de direitos fundamentais?

    A resposta a essa indagação já vem sendo dada pela legislação estadual, dado que, em matéria de proteção da fauna, a competência legislativa é concorrente (art. 24, VI, CF).

    O Código Estadual de Proteção aos Animais de Santa Catarina (Lei 12.854/2003),  alterado pelas Leis 17.485/2018 e 17.526/2018, por exemplo, reconhece que cães e gatos são sujeitos de direito, conforme seu art. 34-A:

    Art. 34-A Para os fins desta Lei, cães e gatos ficam reconhecidos como seres sencientes, sujeitos de direito, que sentem dor e angústia, o que constitui o reconhecimento da sua especificidade e das suas características em face de outros seres vivos.

    De forma subjetivamente mais ampla, o recentíssimo Código Estadual do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul (Lei 15.434/2020) instituiu o regime jurídico especial para animais domésticos de estimação e os qualificou como sujeitos de direitos, conforme seu art. 216:

    Art. 216. É instituído regime jurídico especial para os animais domésticos de estimação e reconhecida a sua natureza biológica e emocional como seres sencientes, capazes de sentir sensações e sentimentos de forma consciente.

    Parágrafo único. Os animais domésticos de estimação, que não sejam utilizados em atividades agropecuárias e de manifestações culturais reconhecidas em lei como patrimônio cultural do Estado, possuem natureza jurídica sui generis e são sujeitos de direitos despersonificados, devendo gozar e obter tutela jurisdicional em caso de violação, vedado o seu tratamento como coisa.

    Apesar dessas leis estaduais não realizarem a catalogação dos direitos animais, a simples requalificação jurídica dos cães e gatos (Santa Catarina) ou dos animais domésticos de estimação (Rio Grande do Sul), de coisas para sujeitos de direitos (como impõe a Constituição Federal), já opera efeitos jurídicos expressivos, condizentes com a dignidade animal.

    Ainda na legislação estadual, a lei inequivocamente mais avançada e abrangente do Brasil, em termos de especificação de direitos subjetivos animais, é o Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba (Lei Estadual 11.140/2018), com a explícita adoção da linguagem dos direitos, conforme o seu art. 5º (ATAIDE JUNIOR, 2019, passim):

    Art. 5º. Todo animal tem o direito:

    I – de ter as suas existências física e psíquica respeitadas;

    II – de receber tratamento digno e essencial à sadia qualidade de vida;

    III – a um abrigo capaz de protegê-lo da chuva, do frio, do vento e do sol, com espaço suficiente para se deitar e se virar;

    IV – de receber cuidados veterinários em caso de doença, ferimento ou danos psíquicos experimentados;

    V – a um limite razoável de tempo e intensidade de trabalho, a uma alimentação adequada e a um repouso reparador.

    Ora, se os animais possuem direitos subjetivos catalogados em lei, a violação desses direitos gera o direito à reparação, o qual, inevitavelmente, deve ser dar por sentença judicial, após o regular e adequado processo civil.

    Essa solução não parece razoável diante do direito posto?

    6. Pelo princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV, CF), sabe-se que todo titular de direitos subjetivos tem o direito de defendê-los em juízo, perante o Poder Judiciário: em regimes democráticos, a tutela jurisdicional é universal e inafastável.

    Em outras palavras, todo titular de direitos substantivos tem capacidade de ser parte em processo judicial, sem o que a garantia de acesso à justiça seria ineficaz e sem utilidade prática (DIDIER JÚNIOR, 2018, p. 369).

    Reconhecendo-se a capacidade de ser parte do animal, ele próprio poderá demandar o agressor em juízo.

    Mas, como se pode intuir, não poderá o animal ir sozinho a juízo, pelas próprias patas: os animais, como as crianças humanas ou como qualquer outro humano incapaz, não detêm capacidade processual, devendo ser representados ou assistidos em juízo.

    Quem terá poderes para representar ou assistir um animal em juízo, auxiliando-os na defesa de seus direitos subjetivos?

    Segundo o art. 2º, §3º do Decreto 24.645/1934, assinado por Getúlio Vargas, ainda em vigor (ATAIDE JUNIOR; TOMÉ, 2020, passim), “Os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras de animais.”

    Assim, no caso em análise, o animal será assistido em juízo pelo seu responsável (o “substituto legal” referido pelo Decreto 24.645/1934), em processo no qual intervirá, necessariamente, o Ministério Público (art. 178, III, CPC), como fiscal da ordem jurídica, garantindo-se a proteção do incapaz. Competirá ao responsável, como assistente do animal-vítima, contratar o advogado que patrocinará a causa ou obter a representação judicial por meio da Defensoria Pública.

    Nas hipóteses em que o animal não tenha responsável, poderá o Ministério Público (e também a Defensoria Pública, segundo a atual Constituição) ou entidade de proteção animal (as “sociedades protetoras dos animais”) atuar como assistente animal em juízo.

    Evidentemente, na ação proposta poderá ser requerida a tutela provisória de urgência, nos termos dos arts. 294 e seguintes do CPC, para se obter, desde logo, o imprescindível  custeamento das despesas médico-veterinárias mais prementes.

    Em caso de procedência do pedido, a indenização paga será administrada pelo responsável ou curador, em proveito exclusivo do animal (art. 1.741, do Código Civil), com dever de prestar contas em juízo (art. 1.755, do Código Civil).

    7. As ações indenizatórias propostas por animais, devidamente assistidos em juízo, bem em breve ocuparão o cenário judiciário brasileiro. Animais não são coisas. São sujeitos de direitos fundamentais, os quais, uma vez violados, devem ser reparados em juízo. Por isso, não se pode negar que animais detêm capacidade de ser parte. O Decreto 24.645/1934, ainda em vigor, aponta quem serão os representantes/assistentes dos animais em juízo.

    Com tais demandas propostas e aceitas pelos juízes – não por compaixão, mas por direito e justiça – respostas adequadas serão oferecidas a certos dilemas da proteção animal: como garantir recursos para tratar animais maltratados, sejam os abandonados, sejam aqueles cujos responsáveis são desprovidos de recursos financeiros suficientes? Como pagar as despesas médico-veterinárias necessárias?

    Assim sendo, para a hipótese lançada ao início, a resposta dada pelo Direito Animal é adequada e já se encontra devidamente positivada: os animais têm direito à reparação de danos e podem demandar em juízo em nome próprio, desde que devidamente assistidos em juízo, na forma do Decreto 24.645/1934.

    VICENTE DE PAULA ATAIDE JUNIOR – Professor Adjunto do Departamento de Direito Civil e Processual Civil e da Pós-Graduação em Direito da UFPR. Membro na Comissão de Direito Socioambiental da AJUFE

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