Artigo: Atividade policial e sigilo investigativo – a que e a quem serve a Polícia Federal?

     

    Artigo publicado originalmente no Estadão de autoria do juiz federal Vlamir Costa Magalhães.

     

    Não há respaldo para a PF assessorar, direta e pessoalmente, qualquer autoridade pública

     

    “(...) a democracia liberal protege os direitos do homem, e não os crimes do homem. Maldita seria a democracia liberal se se prestasse a uma política de cumplicidade com a delinquência” - Nelson Hungria

     

    Não há discussão mais atual no Brasil do que a concernente ao papel da Polícia Federal quanto ao sigilo das investigações.

    O primeiro ponto a ser considerado é a motivação que justifica o sigilo em investigações criminais. A efetividade das diligências policiais depende da não divulgação provisória das informações, pois, do contrário, há risco de destruição de provas. Ademais, a honra e a imagem dos investigados devem ser resguardadas, no grau máximo possível, em face do strepitus judicii (barulho do processo), eis que a revelação pública da existência do inquérito policial pode causar constrangimentos.

    O segundo ponto remete ao fato de que, em se tratando de órgão público, o ponto de partida da análise sobre as funções e limitações da Polícia Federal não pode ser outro senão o teor das normas legais e constitucionais. 

    Afora os princípios gerais da administração pública - em especial, a legalidade e a impessoalidade constantes do artigo 37 -, o constituinte estabeleceu, no artigo 144, parágrafo 1.º, IV, que a Polícia Federal exerce a função de polícia judiciária da União, que consiste na investigação de delitos de competência da Justiça Federal.

    Outrossim, o artigo 20 do Código de Processo Penal determina que, na condução de inquéritos, a autoridade policial tem o dever de assegurar o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade. Logo, o sigilo não configura opção, mas obrigação derivada de mandamento legal.

    Em sentido corolário, o artigo 10.º da Lei n.º 9.296/1996 dispõe que constitui crime violar, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei, o segredo de justiça de interceptações telefônicas, telemáticas ou de informática - pena de dois a quatro anos de reclusão e multa.

    Com relação a dados obtidos por outros meios probatórios, a divulgação permanece incriminada, a depender das circunstâncias, pelo artigo 153, parágrafo 1.º, do Código Penal, que pune a divulgação de informações sigilosas ou reservadas com pena de detenção de um a quatro anos e multa, ou pelo artigo 154 desse mesmo código, que pune a violação de segredo profissional - pena de detenção de três meses a um ano ou multa.

    Não se pode argumentar que as informações têm de ser compartilhadas por ordem de superiores, sob pena de descumprimento do dever de obediência hierárquica, uma vez que, à luz do artigo 116, IV, do Estatuto dos Servidores Públicos da União Federal, é dever do servidor cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais.

    Portanto, ainda que parta da chefia institucional, ou da Presidência da República, eventual determinação de compartilhamento de dados sigilosos, ela seria ilegal e, consequentemente, indigna de acatamento. O Código de Ética Profissional do Servidor Federal e o Código de Ética da Polícia Federal também estampam os deveres de sigilo e resistência a pressões de superiores hierárquicos que visem a obter quaisquer favores, benesses ou vantagens indevidas em decorrência de ações ilegais, e denunciá-las.

    Apesar de integrar o Sistema Brasileiro de Inteligência (Lei n.º 9.883/1999 c/c Decreto n.º 4.376/2002), a Polícia Federal pode, nesse contexto, fornecer apenas extratos de elementos estratégicos e análises de riscos, normalmente envolvendo grandes eventos, como os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo de Futebol.

    Poder-se-ia alegar também que o sigilo não é absoluto, perante a prerrogativa advocatícia descrita no artigo 7.º, XIV, da Lei n.º 8.906/94 e na Súmula Vinculante n.º 14. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal já fixou que, mesmo em face do advogado, o acesso integral ao inquérito policial deve ser negado, ao menos até que as diligências em curso sejam concluídas. Reconhece-se, portanto, que o sigilo é imprescindível para que apurações policiais alcancem sua única finalidade legítima: a busca de provas para a punição de criminosos.

    No Estado Republicano e Democrático de Direito, a Polícia Federal está, umbilical e essencialmente, atrelada à investigação de crimes, não havendo respaldo para que a instituição assessore, direta e pessoalmente, qualquer autoridade pública, muito menos prestando informações sigilosas sobre os delitos que investiga.

    Conclusivamente, as informações de inquéritos policiais conduzidos pela Polícia Federal estão submetidas a sigilo legal. O policial ou autoridade que violar o dever de não divulgação está sujeito à responsabilização penal, a depender das circunstâncias, pelos crimes previstos no artigo 153, parágrafo 1.º do Código Penal, no artigo 154 também do Código Penal, ou no artigo 10.º da Lei n.º 9.296/1996, sem prejuízo das consequências punitivas nos âmbitos cível e administrativo.

    Vlamir Costa Magalhães é juiz federal, doutor em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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