Princípios da inovação judicial: a Justiça como serviço

    Por "To understand a building, go there, open your eyes, and look!". Embora excelente, a dica tem uma origem um tanto inesperada. Ela vem de Stephen Breyer, juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, curiosamente um entusiasta da arquitetura, a ponto de integrar o painel de jurados do Prêmio Pritzker, uma espécie de Nobel da área. Breyer começou a se envolver com arquitetura décadas atrás, quando ainda presidia a Corte de Apelações do Primeiro Circuito, com sede em Massachusetts, e participou do planejamento para construção da belíssima John Joseph Moakley United States Courthouse, em Boston.


    Para quem gosta de viajar pelo mundo, fica também a dica, talvez surpreendente, de um turismo judiciário. Não que se perca longo tempo com isso, embora eventualmente a história de determinada localidade seja indelevelmente marcada pela atuação do sistema de Justiça, como em Nuremberg. Porém, ainda que esse não seja seu interesse mais imediato, não custa captar a imagem das estruturas judiciárias com um pouco de sensibilidade. É comum que, nos giros turísticos pelas cidades, você seja apresentado ao local onde elas funcionam. Nesse momento, tente parar, abrir os olhos e contemplar o prédio, não apenas em sua beleza estética, mas sobretudo quanto aos seus aspectos iconográficos.

    Com o tempo e a repetição, você constatará impressionantes semelhanças. Perceberá que o edifício onde funciona a Justiça Federal do Rio Grande do Norte é muito parecido com os da Suprema Corte dos Estados Unidos, da Suprema Corte da Índia e mesmo da Suprema Corte Popular da China. São prédios que costumam ostentar uma suntuosidade horizontal, com fachada imponente e colunas elevadas. Em geral, essas características costumam se manter mesmo em alguns prédios com design mais contemporâneo, como a High Court da Austrália e a Corte Constitucional da África do Sul.

    A arquitetura judiciária oferece uma fascinante reflexão acerca do exercício do poder na História, assim como seus respectivos rituais. Em Images de la Justice, Robert Jacob explica que a Justiça era inicialmente exercida ao ar livre e, a partir do século XII, deslocou-se para o interior de prédios. Nas civilizações mais remotas, os julgamentos podiam ocorrer embaixo da "árvore de Justiça" ou em ambientes próximos de pedras sagradas. Na Idade Média, mais adiante, a Justiça foi transferida para as cidades e passou a funcionar nos chamados town halls, prédios cívicos então construídos para legitimar o poder exercido pelos governantes. No caso dessas estruturas judiciárias medievais, os edifícios eram costumeiramente concebidos em dois níveis, sendo o térreo destinado ao cárcere e o primeiro andar, às audiências e julgamentos.

    Na Idade Moderna, os prédios judiciários começam a adquirir a feição de "palácios da Justiça" que ostentam até os dias atuais e que marcam a tradição da arquitetura judiciária no mundo todo. Esses palácios consolidaram o ideal de "templos da Justiça" como um locus em que o elemento religioso se segregava em definitivo do jurídico, porém no qual a Justiça era alçada à condição de um valor social grandioso e elevado. Por isso, embora já secularizados, esses prédios mantinham nítida influência religiosa no seu design, como forma de externar uma espécie de sacralidade judiciária por meio da qual a Justiça preservava um certo distanciamento como meio de defesa de interferências externas.

    Essa mesma tradição se expressa na arquitetura judiciária brasileira, por meio da qual se projeta, até de forma deliberada, a simbologia de grandiosidade e de sobriedade da Justiça como valor. É certo que tal característica tem a virtude de reforçar no imaginário social alguns dos princípios da ética judicial, como a independência, a imparcialidade e a integridade. Todavia, há um nítido aspecto negativo de apresentar como referencial apenas um ideal abstrato de Justiça distante do indivíduo, o real titular dos direitos a serem tutelados pela jurisdição. Em outras palavras, o modelo tem como ponto de partida o resguardo da necessária autoridade da jurisdição e seu exercício por meio de um desejado marco ético, mas descura da importância de conferir o necessário prestígio ao destinatário da distribuição da Justiça.

    Harvard Kennedy School, por meio do case Order Kids in Court, baseado na Política de Acolhimento de Crianças da Justiça Federal do Rio Grande do Norte, teve a oportunidade de estimular a reflexão em torno do tema em seus cursos sobre inovação no setor público. Em 2017, a iniciativa surpreendeu a professora Sanderijn Cels, que não tinha a menor ideia de que a instituição, com suas excelentes instalações rigorosamente estruturadas a partir da tradição, era frequentada por crianças carentes da Região Nordeste, porque seus pais não tinham com quem deixar seus filhos quando compareciam às audiências das ações previdenciárias. Cels ficou surpresa com o colorido que as brinquedotecas proporcionaram aos outrora cinzentos fóruns e decidiu compreender melhor o desafio de inovar numa instituição tão tradicional quanto o Poder Judiciário, com foco no destinatário do serviço.

    Na mesma Justiça Federal do Rio Grande do Norte, até o simples uso de cores nas dependências internas já fora antes disso objeto de intenso debate, sob o legítimo questionamento quanto ao respeito à identidade da instituição. Felizmente, esse colorido timidamente tornou-se política institucional no Poder Judiciário nos últimos anos e talvez o marco mais significativo a respeito tenha sido a instalação, também em 2017, do Laboratório de Inovação da Justiça Federal de São Paulo, o iJusplab, inaugurando um hoje denso movimento em torno da inovação judicial.

    É importante ressaltar que inovação não se confunde com tecnologia. A relação entre ambas é de fim e meio. O conceito de inovação implica colocar o ser humano no centro da estruturação de um novo modelo social qualquer e, assim, agregar-lhe valor. A tecnologia, por outro lado, constitui ferramenta para que a inovação possa atingir seus objetivos. Nesse sentido, a inovação tecnológica é apenas uma vertente de um amplo leque de possibilidades de incrementar um serviço, romper paradigmas ou mesmo transformar radicalmente a realidade.

    É um equívoco, pois, associar inovação judicial à mera ampliação do emprego da tecnologia na prestação jurisdicional. Aliás, essa é premissa até perigosa, porque pode resultar numa espécie de "exponencialidade da opressão", simplesmente tornando eletrônicas práticas já existentes e robotizando problemas sistêmicos do Poder Judiciário. A inovação precisa ser elemento propulsor de mudança de cultura organizacional, por meio da agregação de uma espécie de valor judicial, com foco direcionado ao jurisdicionado, em busca de uma jurisdição mais humana, democrática, transparente, sustentável e solidária.

    Esse redirecionamento de foco ao jurisdicionado induz profunda mudança de paradigma na forma como a jurisdição é estruturada. Essencialmente, ela deixa de ser pensada como um prédio, um locus em que a Justiça é distribuída, para se transformar num serviço em benefício do usuário, organizado segundo as suas necessidades e de forma a proporcionar-lhe a melhor experiência.

    A jurisdição não se transforma num serviço apenas pela capacidade de funcionar remotamente, como ocorreu com bastante sucesso durante a pandemia da Covid-19, senão a partir de uma mudança de mentalidade, de cultura organizacional, de paradigma a partir do qual se estrutura. Porém, essa transformação pressupõe sejam revisitados de alguns valores tradicionais, sem os quais a ideia de centralidade no jurisdicionado não se concretiza. Como se trata de algo novo, não existe propriamente marco teórico a respeito e, por isso, este texto objetiva apresentar ao debate público alguns possíveis princípios da inovação judicial, como sugestões de ressignificação ética e institucional da jurisdição.

    Esses possíveis princípios da inovação judicial, os quais explicarei a seguir, incluiriam o princípio da horizontalidade (princípio do tamborete); o princípio da gestão judicial democrática; o princípio da cocriação judicial; o princípio da colaboração judicial; o princípio da independência judicial compartilhada; o princípio da racionalidade experimental; o princípio da flexibilidade e da adaptabilidade; o princípio da desburocratização; o princípio da cultura de simplicidade; o princípio da cultura digital judicial; o princípio da comunicação judicial empática e inclusiva; o princípio da diversidade e da polifonia de ideias; o princípio da sustentabilidade; e o princípio da centralidade no jurisdicionado.

    O princípio da horizontalidade não propõe em si a quebra da hierarquia no contexto do Poder Judiciário, até porque isso esvaziaria a importante noção de autoridade. Porém, não há tampouco como inovar se essa estrutura hierárquica não dialoga e torna impossível o desenvolvimento de empatia em relação à relevante participação de cada ator na prestação jurisdicional, inclusive do próprio jurisdicionado. Na verdade, o princípio exige uma espécie de lugar de fala e de escuta, de modo a proporcionar o enriquecimento do processo decisório. A referência a "princípio do tamborete" remete à necessidade de relativização do formalismo dos espaços judiciais em que se pretende inovar, a fim de que o mero simbolismo não silencie determinados indivíduos que precisam falar e ser ouvidos. Como exemplo, laboratórios judiciais de inovação são locais muito mais propícios para inovar do que os salões nobres de fóruns e tribunais.

    O princípio da gestão democrática é um desdobramento do primeiro, pressupondo que uma gestão inovadora precisa saber ouvir, em busca da agregação de genuíno valor judicial, evitando que determinadas estratégias sejam traçadas sem a devida atenção aos problemas sistêmicos da jurisdição e simplesmente expressem a aceleração de uma atividade irrefletida e acrítica quanto às respectivas consequências sociais.

    A diferença entre os princípios da cocriação e da colaboração judiciais é bastante tênue. O primeiro diz respeito à maior legitimidade social das construções coletivas no contexto da jurisdição. É um princípio muito rico, por exemplo, para orientar o "saber fazer" do juiz em demandas estruturais, em litígios complexos e mesmo na concepção de novos serviços judiciais em geral. A colaboração judicial, por outro lado, refere-se ao aspecto ético, ao "saber ser" dos atores judiciais em torno do processo de inovação, à consciência quanto à importância de um agir coletivo diante da complexidade do fato social no estágio atual civilizatório.

    A associação entre esses dois princípios conduz ainda a outro, o da independência judicial compartilhada. Ora, se se reconhece a legitimidade de construções coletivas, de uma cultura de cocriação judicial, assim como se estimula a colaboração como postura ética, o princípio da independência judicial também é ressignificado, para afastar a ideia de que sua manifestação depende da tradicional postura de isolacionismo e distanciamento do juiz, desde que respeitada a diversidade, a isonomia e o caráter democrático no processo de inovação judicial.

    O princípio da racionalidade experimental indica a legitimidade de uma postura indutiva quanto à transformação da realidade. Os juristas são reprodutores, por tradição, de uma cultura formalista como roupagem de uma lógica essencialmente dedutiva, que pouco valor atribui à experiência. Nesse sentido, eles tendem a ser conservadores e apresentar uma postura anti-inovadora. Pelo princípio, cada unidade judicial pode ser um laboratório de transformação da jurisdição, agregando valor judicial que pode ser amplificado pelos canais próprios de fomento e gestão da inovação judicial.

    Esse princípio é reforçado por outro, o da flexibilidade e da adaptabilidade. Ora, não faz sentido reconhecer o valor de tentativa e erro como vetores de produção de conhecimento se não for agregada a permissão de correção de rumos em face do constante aprendizado. Por isso, o formalismo judicial deve ceder à flexibilidade e à adaptabilidade, possibilitando a evolução de determinada prática e o permanente incremento de novos valores judiciais.

    O mesmo formalismo, tão entranhado nas estruturas e práticas judiciais, precisa ser superado, a partir de uma mudança de cultura, expressa pelo princípio da desburocratização. Como desdobramento, é preciso fomentar uma cultura de simplicidade, outro princípio da inovação judicial, irradiando-se para toda "cadeia produtiva" da prestação jurisdicional e do serviço judicial como um todo, inclusive quanto ao uso da linguagem e à definição do suporte material de apresentação de dados judiciais nos processos. O excessivo recurso ao tradicional suporte documental como pressuposto de validade da prática de atos, por exemplo, é algo que já deveria ter sido superado, diante das inúmeras oportunidades de produção criativa de informações a partir de dados que a tecnologia, por exemplo, já tem condições de oferecer.

    Surge daí a importância do princípio da cultura digital. Ora, é equivocado compreender cultura digital como mera substituição do suporte físico, se as práticas não são também ressignificadas. Por esse princípio, a jurisdição já pode ser pensada sob perspectiva desterritorializada, numa espécie de Poder Judiciário em nuvem, e os autos judiciais precisam ser tratados como um meio de gestão inteligente de dados e não apenas de acúmulo cronológico de documentos. Abre-se também um amplo campo de reflexão para construção de padrões de ética e validade digitais, algo que se pode iniciar por uma correlação entre as dimensões presencial e digital da prática de atos processuais.

    Se a jurisdição se estrutura também como serviço, com centralidade no jurisdicionado, é de rigor que se assegure a este uma participação ativa no processo judicial e nos serviços judiciais em geral. Para que isso ocorra, é preciso que ele compreenda a linguagem por meio da qual a mensagem é transmitida. Isso suscita a importância do princípio da comunicação judicial empática e inclusiva, em função do qual surge a necessidade de repensar a linguagem sob a perspectiva do jurisdicionado. Isso não significa abandonar o rigor técnico, senão traçar estratégias, a exemplo do visual law, em benefício de uma maior efetividade na comunicação.

    Esse aspecto é fundamental porque a diversidade é um pressuposto fundamental da inovação. Não há como agregar valor (judicial) com uma postura excludente. Daí a importância do princípio da diversidade e da polifonia de ideias. A inovação judicial busca solucionar problemas complexos e isso não é possível sem que se oportunize a apreciação de determinado problema ou desafio, jurídico ou judicial, sob as mais diversas óticas. A não afirmação desse princípio implica tentar enfrentar a complexidade a partir de raciocínios lineares e, portanto, sem potencial transformador da realidade. Outro princípio relevante é o da sustentabilidade. Ora, o conceito de diversidade é incompatível com a lógica do descarte e, por isso, as soluções inovadoras são essencialmente inclusivas, equilibradas e pensadas nas consequências às gerações futuras.

    Por fim, aquela que talvez seja uma espécie de matriz filosófica dos demais: a centralidade no jurisdicionado, que lida com habilidades e atitudes no contexto da jurisdição. Ele é o indutor de um modelo de jurisdição que se organiza de dentro para fora, sob a premissa de uma autoridade que serve e escuta, que deixa de focar no processo para se estruturar de forma a proporcionar ao jurisdicionado a melhor experiência possível, nos limites da aplicação da Constituição e da lei. Ele pressupõe essencialmente o exercício de empatia, de se colocar na posição do jurisdicionado, para tentar oferecer o serviço que gostaria de receber no lugar dele. Parece algo simples ou mesmo rudimentar, mas é algo de um impressionante poder transformador da jurisdição, em benefício da democratização do Direito.


    Marco Bruno Miranda Clementino é juiz federal no Rio Grande do Norte, professor da UFRN, doutor em Direito, com formação em Inovação e Liderança pela Harvard Kennedy School, membro do Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal e do Comitê Nacional da Conciliação do CNJ, coordenador de inovação da JFRN, formador da Enfam e coordenador do Ibet-Natal.
     

    Revista Consultor Jurídico, 9 de novembro de 2020, 20h24

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