Conhecendo as Juízas Federais #7 - Cláudia Cristofani

Crédito da foto da imagem de introdução: TRF4, livro "25 anos de memória - 1989-2014"

 

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“Ser juíza já faz parte de minha identidade, é isso o que sou”, destaca a sétima entrevistada do projeto ‘Conhecendo as Juízas Federais’, a desembargadora federal Cláudia Cristofani, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4).

Cláudia iniciou a carreira na magistratura estadual do Paraná, em comarcas do interior, e em 1992 passou no concurso para juíza federal, atuando como titular da 5ª Vara Federal de Curitiba. Em julho de 2013, tomou posse como desembargadora na 4ª Região.

Tendo sido titular da primeira Vara Previdenciária do Brasil, avalia que “a especialização implicou em que pela primeira vez se buscasse compreender os significados da dura terminologia atuarial e tecnicismos da legislação previdenciária, com a compreensão dos efetivos impactos, inclusive matemáticos, das opções legislativas sobre a concessão e o cálculo dos benefícios e manutenção da renda mensal”.

Atualmente, exerce a relatoria de processos da Operação Lava Jato no âmbito da 4ª Seção Criminal do TRF4, que decide recursos e outros incidentes interpostos contra decisões da 8ª turma. Na opinião da magistrada, essa é uma Operação importante por difundir informações socialmente relevantes sobre o modo de fazer política no Brasil e chamar a atenção da população sobre a premência do combate à corrupção.

Segundo a desembargadora, a carreira de juíza, além de difícil, impõe importantes limitações pessoais e sociais. “A intensidade das dificuldades enfrentadas pelas mulheres não é homogênea e depende de fatores econômicos, culturais e sociais. Porém não se diga que inexiste, sendo os índices de violência doméstica - cujos efeitos transcendem a pessoa da vítima, especialmente quando têm filhos - a metáfora mais eloquente a sinalizar que efetivamente existe um problema a ser pensado coletivamente”, analisa.

Ela enfatiza que o trabalho, pago ou não, de mulheres que cuidam diariamente de pessoas dependentes é inevitável e vital para qualquer sociedade que se pretenda saudável e apta a se reproduzir. Nessa trilha, também aponta o fato de a mulher enfrentar mais obstáculos para estar no cenário político e na vida pública quando a isso se soma o silencioso trabalho de prover pelas pessoas dependentes.

Finalizando a conversa, Cláudia Cristofani propõe uma reflexão: “Os obstáculos estão diante de nós para serem superados e quem puder resolver melhor os problemas comunitários adiciona valor para a sociedade”.

Leia a entrevista completa:

 

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Registro da magistrada Cláudia Cristofani na entrada da sala de Sessão do Tribunal Regional da 4ª Região, em Porto Alegre. FOTO: Acervo pessoal.

 

1) Onde a senhora começou e exerceu a sua jurisdição?

Iniciei na magistratura estadual do Paraná, em comarcas do interior, experiência cuja riqueza e relevância para a minha formação pessoal e profissional não me canso de ressaltar.

Lembro com muito carinho da dimensão humana dos problemas afetos à jurisdição estadual, do convívio estreito e aprendizado com os colegas juízes, promotores e advogados. E mesmo da interação com as instituições municipais - o juiz no interior tem grande possibilidade de influenciar em assuntos comunitários -, como na edição de leis e nas políticas públicas locais.

Enfim, o juiz acaba sendo forjado por todas as responsabilidades e vivências que vêm da inserção em uma nova comunidade, que recebe e acolhe o magistrado com respeito e cordialidade. 

 

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Cristofani durante Sessão do Tribunal Regional da 4ª Região, em Porto Alegre. FOTO: Acervo pessoal.

 

2) Quais foram as suas atuações mais relevantes?

Difícil graduar a relevância da atuação profissional em um cenário tão dinâmico, pleno de situações variadas e pungentes, sendo que as que recebem maior atenção da mídia e do público nem sempre são as mais significativas. Passa-me na memória ter criado o conselho tutelar de um município; a reposição da bicicleta do trabalhador, destruída quando fora atropelado ao voltar para casa; e a injustiça de um caso, decorrente de falha de defesa, flagrada no último instante e por acaso, e que quase custou a residência do autor. 

Pensando um pouco mais, considero relevante ter contribuído, de forma inaugural, para a sistematização do direito previdenciário, em uma época em que a bibliografia era quase inexistente e a jurisprudência, limitada a poucos temas. Fui titular da primeira Vara Previdenciária do Brasil, aonde permaneci por 12 anos, e estava na composição da primeira Turma Recursal dos Juizados Especiais. A especialização implicou em que pela primeira vez se buscasse compreender os significados da dura terminologia atuarial e tecnicismos da legislação previdenciária, com a compreensão dos efetivos impactos, inclusive matemáticos, das opções legislativas sobre a concessão e o cálculo dos benefícios e manutenção da renda mensal. 

Atualmente, como uma das 6 desembargadoras criminais da 4ª Região, é inevitável que nos chegue às mãos diversas operações de grande repercussão social. Sou a relatora da Lava Jato no âmbito da 4ª Seção Criminal do TRF4, que decide divergências nos julgamentos de apelo da 8ª Turma e outros recursos e incidentes, exercendo um pequeno papel nessa importante operação que, para além de responsabilizar pessoas culpadas e recuperar parte dos danos causados aos cofres públicos, difundiu informações socialmente relevantes sobre o modo de fazer política no Brasil e chamou a atenção da população sobre a premência do combate à corrupção.

A corrupção representa - à par do deletério moral e da quebra de confiança que consiste - o abuso de posições públicas para perpetrar a apropriação da renda que a sociedade produz, sendo lesiva sob os mais diversos enfoques, desde os morais aos históricos e econômicos, passando por todas as pequenas histórias de infortúnios individuais, profundamente injustas.

Com as informações disponíveis, decorrentes dos casos julgados, ficou evidente que ao invés dos agentes econômicos entrarem em saudável competição para oferecer ao povo o melhor serviço ou produto pelo menor custo, aumentando o bem estar social, a corrupção fomenta grupos de interesse privado a se fidelizar a um agente público disposto a manter laços espúrios; e os agentes públicos, ao invés de ofertar o melhor plano de governo, passa a competir por posições de poder ‘loteáveis’, em uma dispendiosa rede de interesses.

O Poder Judiciário, do qual me orgulho de fazer parte, tem importante papel nesse amadurecimento da sociedade brasileira, conquista de todos os juízes e juízas.

 

3) Quais as dificuldades que a senhora já enfrentou?

Uma mulher juíza sofre importantes limitações pessoais e sociais. Arcamos com consequências adicionais pelo exercício de nosso direito à expressão e liberdade de agir. Afortunadamente, são compensadas pela intensa vivência que propicia o exercício da jurisdição.

 

Na Universidade de Chicago com Matha Nussbaum
Encontro da magistrada federal com professora do departamento de Filosofia e Direito da Universidade de Chicago (EUA), Martha C. Nussbaum. FOTO: Acervo pessoal.

 

4) A senhora já sofreu alguma dificuldade ou agravamento especial na profissão por ser mulher?


A intensidade das dificuldades enfrentadas pelas mulheres não é homogênea e depende de fatores econômicos, culturais e sociais. Porém não se diga que inexiste, sendo os índices de violência doméstica - cujos efeitos transcendem a pessoa da vítima, especialmente quando têm filhos - a metáfora mais eloquente a sinalizar que efetivamente existe um problema a ser pensado coletivamente. 

Confesso me preocupar que o processo de conscientização social sofra retardos pelo tom acusador e pela presença de hostilidade e radicalismo dos debates, que gera rejeição às ideias, já dizia Cass Sunstein, a polarização nulifica o processo de deliberação. Não é incomum a agressividade do pleito gerar efeito contrário ao pretendido.

Dito isso, e distanciando-me de questões morais ou ideológicas, as quais realmente não me apraz cogitar, gostaria de apontar um aspecto esquecido, o da sobrecarga da mulher, na esteira dos estudos de Martha Nussbaum (Introduction to the Symposium on Eva Kittay's Love's Labor: Essays on Women, Equality and Dependency) e Feder Kittay (Love’s Labor: Essays on Women, Equality and Dependency).

Sabe-se que grande espectro da sociedade é ou será dependente de cuidados especiais - o bebê, a criança, o doente, o incapacitado, o idoso - e a quase totalidade desses cuidados são atribuídos às mulheres. Havendo grau de parentesco, cuidar não é considerado “trabalho”, muito embora impeça grandemente essas mulheres de perseguir outras atividades da vida - aperfeiçoamento profissional, empreendedorismo, participação política, recreação, cultura, realização pessoal, descanso. Opções são descartadas pela impossibilidade de seguir com elas em todo o seu espectro de limitações. Por vezes sub-educadas e presas ao trabalho doméstico - olhemos ao redor do mundo - mulheres deixam de treinar as habilidades exigidas pelo âmbito corporativo e político.

Nossa visão habitual é a de que apenas o trabalho produtivo no mercado é “real”, o que talvez nos impeça de ver o grande ônus que recai sobre as mulheres. 

Mesmo quando o cuidar é remunerado, em geral é pobremente pago, recaindo o labor sobre mulheres pobres. E se cuidadoras pagas permitem que mulheres mais privilegiadas possam, de algum modo, perseguir suas carreiras, surgem inevitáveis os argumentos de justiça social.

Precisamos reconhecer que o trabalho, pago ou não, de mulheres que cuidam diariamente de pessoas dependentes, além de inevitável, é vital para o sucesso de qualquer sociedade que se pretenda saudável e apta a se reproduzir. Enquanto isso não for feito, os interesses das mulheres estarão sub-representados na esfera pública. 

Os conceitos de cidadania devem compreender a relação de dependência - a pessoa vulnerável e seus cuidadores, em geral mulheres. A mãe cuida de seu infante, a sociedade deve, até certo ponto, auxiliá-la nesse labor, e compreender como esse suporte será promovido, inclusive pelas opções que ela, dado o contexto, deixa de lado. 

Encarar adequadamente a circunstância da mulher enfrentar mais obstáculos para estar no cenário político e na vida pública quando a isso se soma o silencioso trabalho de prover pelas pessoas dependentes.

 

Encontro de Juzes em Washington
Magistrados do TRF4 participaram, em 2015, de curso sobre combate à corrupção em Washington (EUA). FOTO: Acervo pessoal.

 

5) O que a senhora sonha enquanto mulher magistrada?

Sabe-se que “a desigualdade de gênero é má economia. Priva o progresso nacional do talento das mulheres. Reduz o potencial produtivo das forças de trabalho. Restringe o consumo, diminui o rendimento dos impostos e limita os resultados pessoais e nacionais dos investimentos na educação feminina ao forçar as mulheres a seguir profissões e ocupações em que não fazem uso pleno de suas capacidades e habilidades", como dito por Green Templeton College, University of Oxford, no Simpósio sobre Desigualdade de Gênero nos Mercados Emergentes

Percebo, porém, que as diferenças entre papéis de gênero são antigas, talvez evolutivas - possivelmente essa divisão de trabalho, a colaboração entre homens e mulheres em funções distintas, foi determinante para o sucesso competitivo da raça humana, mesmo porque, se sabe, os bebês humanos nascem extremamente imaturos (Y. Harari, Sapiens) - e então voltamos às funções de cuidado, tipicamente exercidas pelas mulheres e durante muito tempo.

Perceber que a sociedade se aproveita desse sobre-esforço feminino e engendrar meios de compensação dessa externalidade positiva demanda debate desapaixonado e não polarizado, com exposição sincera e não acusadora de pontos de vista. 

Transformações não se operam por decreto, a legislação oficial não opera modificações profundas no entendimento dos cidadãos. Compreendo ser necessária a reconstrução de "normas sociais". Há grandes custos de adaptação. Muitos serão onerados pela redistribuição de papéis, que demanda aprendizado e elaboração de perdas - As próprias mulheres deverão reaprender e abrir mão de vantagens secundárias.

Transformações culturais tão arraigadas são difíceis, mas, no Ocidente, tem havido progressos. Sonho, com os olhos abertos à essa realidade que cerca o problema, que seja instaurada comunicação veraz, sadia, produtiva e menos ideologizada, para que seja possível elaborar esse tema sem a procura de culpados, e compreendidos todos os diversos pontos de vista, para que se obtenham progressos a ambos os gêneros.

 

Lanamento e autgrafos do livro em coautoria Estudos sobre Negcios e Contratos
Lançamento do livro "Estudos sobre Negócios e Contratos", no qual Cláudia Cristofani participou como coautora. FOTO: Acervo pessoal.

 

6) Qual a mensagem a senhora pode deixar para as mulheres que sonham ou já sonharam em seguir a carreira?

Há sabedoria dentro de nós, que podemos despertar focando na essência, refletindo, procurando por boas ideias - pensar grande dá o mesmo trabalho que pensar pequeno. Tenho comigo não perder energia com as inevitáveis pequenas coisas que incomodam - é uma demonstração de sabedoria desviar a atenção do alarido produzido pelo senso comum, e por quem discorda e, sem conhecimento, quer opinar. 

O foco na essência permite que os problemas sejam resolvidos de maneira inovadora. Os obstáculos estão diante de nós para serem superados e quem puder resolver melhor os problemas comunitários adiciona valor para a sociedade. 

Como juíza, penso em ser respeitosa com os problemas e sofrimentos das partes envolvidas, e com as tragédias cotidianas nas quais as pessoas se envolvem. Dedico minha atenção e busco me colocar sob a perspectiva dos diversos protagonistas daquelas situações.

Atuo como se cada decisão pudesse colaborar para a construção de uma sociedade melhor, para que eu possa dar bom retorno aos investimentos dos contribuintes que pagam o meu salário. 

Ser juíza já faz parte de minha identidade, é isso o que sou.

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