Entre a gentileza e a hostilidade

Lei Padre Júlio Lancellotti combate higienismo atroz na política urban

 

A poucos dias para o fim do mandato, o presidente Jair Bolsonaro (PL) vetou projeto conhecido como Lei Padre Júlio Lancellotti, que proíbe a instalação de materiais e estruturas ou a construção de intervenções urbanas que dificultem a presença de pessoas em situação de rua em locais públicos. O veto foi rapidamente derrubado pelo Congresso e, finalmente, o Brasil tem uma lei que estabelece a promoção de medidas acolhedoras e inclusivas como diretriz geral da política urbana.

O veto expôs, mais uma vez, a indiferença do Executivo federal em relação à adoção de políticas públicas destinadas à população em situação de rua. Desde maio de 2022, tramita no Supremo Tribunal Federal ação contra a omissão estatal em relação ao estado de coisas inconstitucional no que diz respeito a essa população (ADPF 976). Uma das medidas pedidas nessa ação é a determinação judicial para que o Estado lato sensu não tolere a adoção da arquitetura hostil na concretização do direito fundamental às cidades sustentáveis.

Os que apresentaram argumentos contra a lei agora aprovada destacaram que a expressão "técnicas construtivas hostis" é imprecisa, que geraria insegurança jurídica. Porém, qualquer cidadão cansado, que tente se reclinar sobre um banco de praça pública, inclinado de maneira vertiginosa, perceberá em pouco tempo a sensação de desconforto que o mobiliário provoca e compreenderá, além de qualquer dúvida razoável, o que é um equipamento urbano hostil.

 
Paradoxalmente, praças, calçadas, praias, vãos abaixo dos viadutos, dentre outros bens de uso comum do povo, não são locais para os que não têm onde morar. O incômodo com a ocupação de espaços públicos por pessoas em situação de rua reflete o olhar de que é uma população que precisa ser esquecida ou apartada em guetos não visíveis e distantes do convívio social, como uma punição. Na balança da desigualdade brasileira, o veto presidencial se conformava à política pública higienista que, baseada no uso de subterfúgios e silêncios jurídicos, ainda enverniza o planejamento urbano brasileiro.
 
O Estado tem de acolher a pessoa em situação de rua —e criar alternativas de moradia, de tratamento in loco e de adoção de novos projetos de vida, seja onde for—, não expulsá-la, hostilizá-la, torturá-la, bani-la, exilá-la, vetá-la da cidade. Esse dever de acolhimento é constitucional e também internacional, previsto em diversos documentos, inclusive na Agenda 2030 da ONU.
 
O viver em situação de rua, ocupando espaços para a sobrevivência, é um átimo de cidadania que restou de quem perdeu acesso aos direitos que asseguram o mínimo existencial. É inaceitável a criação de barreiras físicas e de violência institucional para apartar, dos olhos da sociedade, quem precisamos reconhecer, gentilmente acolher e conferir direitos.
 

Artigo publicado originalmente pela Folha de S.Paulo.
 
Escrito por:
Arícia Fernandes

Professora da UERJ, é coordenadora do núcleo de estudos do Direito da Cidade e procuradora do município do Rio de Janeiro

Inês Virgínia Soares

Doutora em direito, é desembargadora no TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região)

Luciana Ortiz

Juíza federal, é integrante do Comitê PopRuaJud do CNJ (Conselho Nacional de Justiça)

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