Dados como estratégia para concretização de direitos previdenciários

    Por Priscilla Pereira Costa Correa e Caroline Somesom Tauk* (Publicado originalmente em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/dados-como-estrategia-para-concretizacao-de-direitos-previdenciarios/

    27 de novembro de 2020 | 15h35

    O INSS é o maior demandado em todo o Judiciário brasileiro: são quase 7 mil novas ações por dia ajuizadas contra a autarquia, nas Justiças Federal e Estadual, segundo a Advocacia-Geral da União. Os mecanismos de resolução alternativa de conflitos nesta seara têm seu uso muitíssimo abaixo do ideal no Brasil, não ultrapassando a margem de cerca de 10% dos conflitos, apesar das constantes campanhas de estímulo. E por que as pessoas não procuram a soluções alternativas como primeira porta de acesso à justiça? Em geral, não falta conscientização aos litigantes para a consensualidade, mas há um enorme incentivo para a litigiosidade no Brasil.

    Temos duas opções. Continuamos sendo o país campeão mundial de processos judiciais, já tendo atingido 109 milhões – quase o quadruplo da Índia, com cerca de 30 milhões e população muito superior à brasileira -, ou buscamos soluções inovadoras para reduzir esse número e assegurar o uso adequado e responsável dos serviços do Poder Judiciário, sem limitar o acesso à justiça. Os Centros de Inteligência do Judiciário, a exemplo do Centro Local de Inteligência da Justiça Federal do Rio de Janeiro (CLIP – JFRJ), trabalham com a segunda opção.

    A ideia de que o Judiciário não deve ser a única porta de acesso à justiça não é nova. O professor norte americano Frank Sander, na década de 70, concebeu o conceito de “justiça multiportas”, segundo o qual a justiça pode ser prestada dentro e fora das Cortes, como por meio da mediação, conciliação e arbitragem.

    Para enfrentar o desafio de um número crescente de disputas, em sua maior parte na forma eletrônica e, portanto, digital, a tecnologia vem sendo usada para prevenir litígios e criar incentivos para desjudicialização, e é neste ponto que ganham destaque as novas ferramentas de monitoramento de processos, essenciais para que se possa dar outros passos rumo à inovação, inclusive a digital. A desjudicialização deve ser entendida como conjunto de medidas voltadas à resolução de conflitos, em sua gênese, promovendo pacificação social, revertendo a judicialização excessiva mediante prevenção, a partir da identificação dos focos de litigiosidade e encontrando soluções pacíficas com atores do sistema de justiça.

    Atento a isso, o Centro de Inteligência da Justiça Federal do Rio de Janeiro elaborou o MonitoraPrev, ferramenta que extrai dados dos processos previdenciários, e laudos eletrônicos periciais, e exibe, de forma simples e visual, painéis com informações georreferenciadas das demandas, análise comportamental dos atores da Justiça, permitindo mineração e futura predição de dados, com vistas à prevenção e desjudicialização destas demandas repetitivas.

    Este monitoramento da judicialização previdenciária em tempo real, mapeia os CIDs mais recorrentes nas demandas por localidade, o tempo médio das etapas processuais atinentes às perícias, os percentuais de conciliação e resultados do litígio, e a partir da indexação de indicadores sociodemograficos de desenvolvimento humano, como renda, saúde, escolaridade, ilustra num mapa de calor baseado no CEP no demandante, com recorte etário e de gênero, perfil contextualizado dos autores. Dados estruturados transformados em informações sobre litígios previdenciários e assistenciais e exibidos em painéis dinâmicos e visuais aptos a cruzamentos múltiplos informações para orientar decisões baseadas em evidências.

    O projeto integra a Agenda 2030 das Nações Unidas para o desenvolvimento. A agenda é um compromisso firmado por 193 países para implementação de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) relacionados a desafios econômicos, sociais e ambientais mais urgentes no mundo, como a erradicação da pobreza, acesso à saúde e educação de qualidade, igualdade de gênero, redução das desigualdades e combate às alterações climáticas. Para analisar o cumprimento dos ODS e, consequentemente, medir o desempenho dos países, a Agenda 2030 se vale de metas e indicadores gerais e específicos, formulados pelos próprios países, sobretudo em relação a políticas públicas.

    Nesse sentido, algumas perguntas se fazem necessárias. Por exemplo, como o Judiciário influi na implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável? Esta foi a pergunta que norteou a edição da Portaria 133/2018, pelo CNJ, e tornou Judiciário brasileiro pioneiro na adoção da Agenda 2030 e na indexação de sua base de dados com 78 milhões de processos a cada um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

    A partir da identificação dos temas que mais impactam os processos judiciais com base na Tabela Processual Única (TPU), buscam-se estratégias de atuação orientadas pela metas e indicadores da Agenda.

    Nestes 2 anos de absorção da Agenda 2030, os ODS têm funcionado como importante bússola de priorização para concretização de direitos humanos no Judiciário, deslocando-o de uma eficiência estritamente quantitativa, para uma abordagem qualitativa com foco na efetividade e concretização de direitos. Por meio do Laboratório de Inovação, Inteligência e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável criado no CNJ (LIODS), diversos grupos trabalham em busca de soluções para problemas estruturais e sistêmicos da judicialização, tendo os Centros de Inteligência papel central neste fluxo de informações e na capilarização das necessidades e propostas.

    A matéria previdenciária é o tema mais demandando na Justiça Federal, e se insere não só no ODS 16, “Paz, Justiça e Instituições Eficazes”, mas também se conecta aos ODS 3 (saúde), 10 (redução de desigualdades) e 17 (parcerias interinstitucionais). A judicialização de benefícios por incapacidade invoca questões afetas à saúde do trabalhador/segurado, e essa judicialização não pode ser vista de forma descontextualizada das políticas públicas dos entes federativos no cumprimento das suas respectivas metas indicadores.

    Afinal, essa é a lógica do princípio da indivisibilidade dos direitos humanos: nenhum direito humano pode ser integralmente implementado sem que os outros também o sejam. Por isso, os 17 (dezessete) ODS guardam estreita correlação entre si. Essa indivisibilidade, que expressa um todo abrangente e interdependente, impassível de separação sem perda de significado e de sua funcionalidade transversal, reclama iniciativas que conectem dados da judicialização com indicadores de desenvolvimento.

    O benefício previdenciário é, não raras vezes, a única fonte de renda do segurado e de sua família e a privação ou a demora indevida na sua concessão demonstra que as instituições não atuaram de forma eficaz, realçando o papel do Judiciário nas dimensões econômica e de inclusão social que alicerçam este compromisso global.

    As iniciativas do LIODS instrumentalizam a atuação do Judiciário no desenvolvimento abrangente propagado pelo Direito e Desenvolvimento e sua lente neoinstitucionalista.

    Também é importante esclarecer os porquês dos dados serem fundamentais para a inovação dentro e fora dos tribunais atualmente. Primeiramente, porque vivemos na sociedade da informação e os “dados são o novo petróleo”, como disse Clive Humby, matemático londrino especializado em ciência de dados. A rapidez das transformações provocadas pela tecnologia nos últimos anos está relacionada a três causas: o surgimento de grandes conjuntos de dados (big data), o aumento do poder da computação e a inteligência artificial. A maior quantidade de informações e a melhor qualidade dos dados permitem um melhor resultado pelos sistemas computacionais. Os conjuntos de dados são considerados “big data” se tiverem um alto grau de três dimensões distintas: volume (a quantidade de dados), velocidade (a rapidez em que os dados são gerados) e variedade (a diversidade de dados). No Judiciário brasileiro, o machine learning – assim chamado em razão da sua capacidade de aprendizagem com a experiência – é o subcampo mais usado nas dezenas de sistemas de inteligência artificial desenvolvidos: ele ensina um programa de computador a identificar padrões em dados e a aplicar o conhecimento obtido em novos dados. Recente pesquisa do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas (Ciapj – FGV), aponta que há, atualmente, 72 projetos de inteligência artificial nos tribunais do país, em fases de implementação distintas.

    O segundo fator decorre diretamente do anterior. Não basta querer inovar, é preciso ter metodologia baseada em dados para permitir que a inovação seja adequada e efetiva. É por isso que os dados são a matéria-prima da inovação: eles permitem conhecer onde residem os principais problemas do sistema processual, a partir daí, realizar o planejamento baseado em informações, determinar onde os esforços devem ser concentrados e, ao final, avaliar a eficiência da medida. Estruturar estes dados é importante para permitir que se verifiquem padrões entre os casos e resultados positivos e negativos da judicialização. Conflitos que não deveriam estar no Judiciário o estão assoberbando e há temas relevantes que merecem atenção judicial e não chegam às Cortes.

    Experiências de formas alternativas de resolução de conflitos no âmbito virtual, como a Online Dispute Resolution, só funcionam porque são ambientes orientados a dados. São exemplos, na iniciativa privada, os sites como a Ebay e Amazon, que usam um sistema de inteligência artificial que informa os consumidores sobre seus direitos, e, na esfera pública, a plataforma Consumidor.gov, um serviço público e gratuito que permite a interlocução direta entre consumidores e empresas para buscar um acordo em conflitos de consumo, bem como a futura plataforma online de mediação do CNJ.

    O terceiro fator que justifica a essencialidade dos dados decorre de uma constatação inegável da nossa realidade: a falta de incentivos para que litigantes invistam na solução administrativa ou consensual do conflito, tomando a jurisdição como a primeira porta de acesso à justiça. O monitoramento da judicialização e do resultado das decisões judiciais referente a 2019 revela que, das 1.333.899 ações ajuizadas em face do INSS nas Justiças Federal e Estadual naquele ano, 701.988 (52,63%) foram favoráveis à autarquia, 465.497 (34.90%) foram desfavoráveis e em apenas 166.414 (12,48%) houve acordo.

    O relatório Justiça em Números de 2019 aponta que 57% de todos os novos processos propostos na Justiça Federal envolvem o INSS e a tendência é aumentar em decorrência das causas relacionadas à reforma da Previdência e à pandemia do Covid-19.

    Por fim, precisamos pensar em como o tratamento de dados previdenciários pode contribuir para a prevenção e desjudicialização de litígios. Estudos da Análise Econômica do Direito (AED) indicam a necessidade premente prevenir e desjudicializar litígios previdenciários. As decisões judiciais possuem capacidade de produção limitada e geram externalidades, na linguagem econômica, pois alcançam diretamente os integrantes da disputa judicial e indiretamente aqueles que estão em situação similar. Por ser de livre acesso, o Poder Judiciário corre o risco de uma utilização exagerada, que provoca aumento do custo social do litígio, arcado por toda a sociedade por meio de tributos5. Estas são externalidades negativas causadas pela sobreutilização, que acabam levando a sua ineficiência.

    Para que os litigantes sejam incentivados à resolução consensual, é preciso que haja uma simetria de informações, ou seja, que ambas as partes em conflito possuam informações sobre todos os elementos necessários para a tomada de decisão, o que lhes permite ter uma visão menos otimista do conflito e mais realista. Nos EUA, a maior parte das disputas são resolvidas extrajudicialmente, e um dos fatores determinantes – além do custo de ajuizar uma ação naquele país ser maior – é a troca de informações prévia entre os litigantes, reduzindo a assimetria e estimulando o acordo. Tal troca é viabilizada por meio das formas extrajudiciais de solução de controvérsias que se baseiam, em boa medida, em dados.

    É por isso que é essencial uma gestão orientada a dados (data driven approach). Com acesso a ferramentas de monitoramento de processos, os atores da Justiça podem calcular melhor as chances de êxito de um futuro litígio, tempo de tramitação processual, índice de perícias favoráveis para a sua patologia e demais custos de transação, elementos que impactam diretamente na decisão de litigar.

    Como exemplo destas causas, vale lembrar que a ausência de uniformidade nas orientações jurisprudenciais, e a recalcitrância dos entes públicos na adoção dos precedentes firmados, estimulam a litigiosidade previdenciária. A incerteza decorrente deste quadro abre espaço para a presença de um otimismo exagerado, típico da racionalidade humana. As partes tendem a ser excessivamente otimistas em relação aos seus direitos e a ausência de precedentes estáveis dificulta que os advogados tracem um perfil claro do prognóstico da demanda para seu cliente, estimulando a disputa judicial e a chamada “loteria de varas”.

    Ferramentas de monitoramento de processos são, portanto, fundamentais para se conhecer dados da litigância judicial, orientar uma gestão eficiente e inovadora capaz de aperfeiçoar a prestação jurisdicional e reduzir os altos custos provocados pela judicialização excessiva.

    A crescente litigância tem ainda um custo alto para toda a sociedade, conforme constatado no Acórdão nº 2.894/2018 do TCU. O INSS efetuou, apenas em 2017, o pagamento de R$ 92 bilhões em cumprimento a decisões judiciais, o que equivale a 15% do orçamento do Regime Geral da Previdência Social (RGPS). A manutenção da estrutura administrativa do Poder Judiciário, da Advocacia-Geral da União, da Defensoria-Pública da União e do INSS destinada a administrar estas demandas, custa, anualmente, R$ 4,6 bilhões os cofres públicos.

    Com efeito, o quadro atual da litigância previdenciária desenhado acima, acompanhado de suas causas, aponta desafios como a necessidade de correlacionar geograficamente focos de litigiosidade e políticas públicas (ou a falta delas), e, desmistificar a ideia de inafastabilidade como uma espécie de primazia da jurisdição. A jurisdição não deve ser a primeira, tampouco a única porta de acesso à justiça. Para enfrentá-los no âmbito previdenciário, é essencial, dentre outras mudanças, uma gestão orientada baseada em evidências, e integração da base de dados do Judiciário com órgãos de saúde (DataSus) e previdência (INSS), incentivo à absorção de entendimentos firmados pelas instâncias administrativas e aos meios consensuais de solução, visibilidade da relação direta entre o déficit de direitos básicos como saneamento, atenção à saúde primária, e os custos transferidos ao Judiciário via excesso de judicialização. O MonitoraPrev constitui um primeiro passo nesse sentido, dados convertidos em informações visuais sobre demandas previdenciárias disponíveis no portal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.

    É assim que direitos humanos, dados e previdência se relacionam. Monitorar dados dos processos previdenciários incrementa eficiência e eficácia do Poder Judiciário neste tema mais demandado na Justiça Federal. Identificar e eliminar barreiras para assegurar direitos de caráter alimentar em tempo razoável é implementar direitos humanos e concretizar os objetivos de desenvolvimento da Agenda 2030.
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    *Priscilla Pereira Costa Correa é juíza federal. Coordenadora do Centro de Inteligência da JFRJ. Mestre em Justiça Administrativa pela Universidade Federal Fluminense- UFF. Docente no Mestrado Profissional da ENFAM. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Direito Desenvolvimento e Impacto das decisões judiciais, do PPGDP/Enfam. Representante do TRF2 para LGPD no CJF

    *Caroline Somesom Tauk é juíza federal em auxílio no Supremo Tribunal Federal. Mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Visiting Scholar em Columbia Law School

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