Conhecendo as Juízas Federais #1 – Neuza Maria Alves da Silva

    Com o intuito de apresentar as Magistradas Federais brasileiras à sociedade, a Comissão AJUFE Mulheres inaugura hoje (22/05) o projeto “Conhecendo as Juízas Federais”. Por meio de uma série de entrevistas, vamos contar a história de desembargadoras, juízas e juízas federais substitutas. Nesta estreia, conheça a trajetória da desembargadora federal Neuza Maria Alves da Silva.
     
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    *As fotos ao longo da entrevista foram disponibilizadas pela Assessoria de Comunicação (ASCOM) do Tribunal Regional da 1ª Região (TRF1)/Proforme.

    Neuza Alves foi juíza na 5ª Vara Federal de Salvador, local no qual permaneceu até 2004, quando foi promovida pelo critério de merecimento ao cargo de Desembargadora Federal e passou a integrar os quadros do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, sediado em Brasília. A magistrada aposentou-se no ano de 2017, contando com 30 anos de serviço dedicados à magistratura.

    Ela graduou-se em Direito pela Universidade Federal da Bahia em 1974, sendo Especialista em Direito Processual (Civil e Penal) e em Direitos Humanos. Fez história ao se tornar a primeira Desembargadora Federal negra a compor os quadros do TRF1, Corte na qual teve atuações relevantes processuais e administrativas, sendo inclusive a Coordenadora dos Juizados Especiais (COJEF).

    Recentemente, a Desembargadora foi homenageada com a aposição de seu retrato e com a exposição permanente da toga de gala usada por ela, no Memorial Desembargador Federal Mauro Leite Soares do TRF1.

    Ela enaltece, na sua trajetória, o compromisso com a fundamentação das decisões e a linguagem clara, pois “exercer o cargo de juíza federal significou um desafio diário e constante! Dia após dia, ano após ano, com a responsabilidade acrescida de fazer o melhor que eu pudesse para contribuir, desse modo, não só para a formação de jurisprudência, como para a distribuição, com equidade, da Justiça que cada um veio buscar quando se dirigiu à Justiça Federal, seja na 1ª ou 2ª instâncias. Ao tempo em que algumas pessoas possam considerar que exista uma divinização da figura do magistrado, eu enxergo ainda o lado da cobrança, da exigência de você ser bom naquilo que faz, você ser estudioso, ser criterioso, ser justo acima de tudo. E o modo que eu encontrei para tornar mais fácil a tarefa de realizar tudo isso foi utilizando, nas minhas fundamentações, uma linguagem que qualquer pessoa entendesse o que eu queria dizer”.

    A sua mensagem, dentre tantas, é a de que “a carreira da magistratura é sublime, única, e eu faria tudo de novo. Entretanto queria trazer um ponto para reflexão que vai servir também como minha palavra de estímulo, incentivo e conselho às magistradas, tanto as que iniciaram na carreira há algum tempo, as que estão iniciando agora e as que pensam em começar. A magistratura exige uma dedicação quase exclusiva, mas é preciso dividir tudo na devida proporção. Sanear as áreas em conflito para que cada um dos papéis da magistrada seja exercido com maestria, é a grande tarefa que a vida nos impõe! E isso não se faz de uma hora para outra, isso se aprende com o tempo”.

    Neuza Maria Alves da Silva bacharelou-se em Direito pela Universidade Federal da Bahia em 1974. Especializou-se em Direito Processual (Civil e Penal) e em Direitos Humanos.

     

    1) Onde a Senhora começou e exerceu a sua jurisdição?

    Meu início na magistratura se deu em 29 de novembro de 1987, quando tomei posse no cargo de Juiz do Trabalho Substituto, no TRT da 5ª Região, na Bahia. Fiquei lá 10 meses e como fiz o concurso de Juiz Federal no mesmo período, fiquei aguardando homologação e julgamento dos recursos. A Justiça Federal chamou um primeiro bloco de colegas em fevereiro de 1988 e eu, compondo um segundo bloco, tomei posse em 29 de agosto daquele ano. Naquela ocasião não existia a figura do Juiz Federal Substituto. Era uma fase anterior à entrada em vigor da Constituição de 1988 e nós, os aprovados, por óbvio, havíamos feito concurso para juiz titular. O ingresso na carreira era assim. Quando me convocaram eu já era Juíza Substituta da Justiça do Trabalho e ainda fiquei em dúvida sobre assumir ou não o novo cargo, em face de que eu tinha três filhos pequenos e tinha minha mãe num estado bastante precário de saúde. Apesar de ser assim, fui pra Brasília no dia marcado para a posse e conversei com o então presidente do Tribunal Federal de Recursos (TFR), tendo em vista que aquele era o quinto concurso patrocinado pelo TFR. O presidente era Gueiros Leite. Ele me atendeu e me passou para conversar com o vice-presidente, Washington Bolívar de Brito, que me convenceu da seguinte situação: “Olha, a gente tem condições de respeitar sua situação familiar somente até dezembro. Então, você pode tomar posse e ficar em função de auxílio em algumas das Varas em Salvador, e em janeiro, já preparada, vai para Rondônia, uma vez que a 2ª Vara de Rondônia é a que está disponível”.

    Então, eu comecei a trabalhar logo em agosto, e em setembro o TFR percebeu o enorme problema que estava para acontecer, tendo em vista que os outros juízes concursados que aguardavam convocação para posse sentir-se-iam prejudicados se esta viesse a ser designada para data posterior ao dia 5 de outubro. O problema estaria criado porque eles não fizeram concurso para Juiz Federal Substituto. Por esta razão o TFR deliberou por abrir as vagas já existentes em decorrência das Varas ainda não instaladas, nelas empossando os concursados, aguardando definição de sua localização para momento a partir do qual as Varas criadas por lei fossem sendo instaladas. Eu já havia tomado posse, e me habilitei a ficar como titular de uma Vara de Salvador. Desse modo vim a ser a primeira juíza federal titular da 8ª Vara da Bahia.

    Em março de 1989, em razão da previsão constitucional, foram instalados os Tribunais Regionais Federais (TRFs) e os juízes mais antigos que se habilitaram e alcançaram promoção foram sendo convocados para compor os cinco regionais. Na Bahia, três juízes foram promovidos. Com isso, três Varas ficaram disponíveis em Salvador. Como a 8ª Vara ainda não tinha sido instalada, eu migrei para a 5ª Vara Federal, onde fiquei até 2004, quando vim a ser promovida ao Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Esse foi meu início na Magistratura Federal.

    Comecei aos 37 anos, em agosto de 1988, como disse, com três filhos menores à época. A Justiça Federal da Bahia só contava com uma mulher no cargo de juíza, Eliana Calmon. Diferentemente, a Justiça do Trabalho tinha várias mulheres em seus quadros, neles já despontando diversos nomes de juízas, titulares e substitutas, muito prestigiadas. Fui também Juíza do Tribunal Eleitoral na Bahia, de 1992 a 1994, primeiras eleições-gerais enfrentadas por aquela Justiça Especializada. Na Bahia, fui Juíza Diretora do Foro titular e algumas vezes substitui, na função, diversos colegas. Fui eleita delegada da Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) na Bahia. Fui Vice-Presidente do Conselho de Defesa dos Direitos da Mulher, um órgão oficial vinculado à Secretaria da Justiça do Estado da Bahia, que já existia formalmente há 18 anos, criado por lei, mas não saía do papel. Naquela oportunidade fui convocada pela sociedade para compor esse Conselho, talvez porque eu já começava a representar uma liderança dentro da magistratura na minha cidade – Salvador. Todos sabiam que eu era uma mulher de origem humilde, sem sobrenome importante como costumava dizer naquela época, na medida em que não ostentava descendência de europeus. A Justiça Federal de então era muito elitizada, tendo em vista a formalidade com a qual eram tratados seus membros, a postura circunspecta de seus juízes e servidores, a solenidade com a qual os seus atos eram praticados, etc. Ainda hoje muitos desses aspectos permanecem e eu credito também a esses detalhes a respeitabilidade da qual goza a Justiça Federal na Bahia.

     

    Tomando Posse, em 17 de dezembro de 2004, como Desembargadora Federal no TRF1. FOTO: ASCOM-TRF1/Proforme

     

    2) Quais foram as suas atuações mais relevantes?

    Em relação às minhas atuações mais relevantes, eu fico com um pouco de dificuldade em pontuar. Foram tantas as oportunidades que tive de dar decisões importantes, de sair na frente de algumas interpretações legais com caráter humanista!!! Mas deixe-me falar sobre um caso específico. Logo que comecei na Justiça, o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não havia decidido a respeito da representação judicial das associações e sindicatos; não havia se posicionado sobre a necessidade ou desnecessidade de que cada associado ou sindicalizado, para ser representado, precisasse outorgar procuração. Essa discussão se arrastou por um longo tempo e as decisões eram todas muito tímidas. A qualquer momento o STF poderia dar a interpretação definitiva e, por consequência, ocorrer que um grande contingente de decisões viesse a ser reformado. Na época, muitos processos foram tendo suas definições deixadas para depois, aguardando a última palavra do STF. Havendo um desses casos na 5ª Vara de Salvador, eu dei uma decisão inovadora na direção da desnecessidade de que o sindicato apresentasse procuração de cada um de seus componentes para viabilizar sua representação perante a Justiça. Eu disse, na decisão, que a previsão constitucional era bastante por si só, a respeito dessa previsão legal, como regra. E assim era porque ainda que não houvesse regulamentação específica em torno da matéria, certo era que nenhum decreto, nenhuma portaria, nenhum ato menor poderia dispor em sentido contrário ou de forma que viesse a dificultar o exercício do direito garantido constitucionalmente. Eu disse que efetivamente não era necessário apresentar a procuração, que a autorização dada em assembleia era suficiente, e que o sindicato representava a categoria por inteiro. Não apenas aqueles que tivessem comparecido ao ato solene. Essa foi uma decisão corajosa, que ocasionou comentários elogiosos à época, vindo a ser o entendimento vitorioso no STF, ao depois.

    Nos dois anos em que coordenei os Juizados Especiais Federais (JEFs) da 1ª Região, minha equipe teve um sucesso muito destacado. Estávamos comemorando dez anos de JEFs e fizemos muita coisa não só em prol de uma celebração, mas uma prova de crescimento, consolidação de ideias, realização de tarefas, retomada de ações que estavam sem estímulos, entre dezenas de outras atitudes que vieram a fazer a diferença. Colocamos para funcionar novamente boas práticas já testadas, que no entanto, tinham perdido vigor.

    Na Coordenadoria dos Juizados Especiais Federais (COJEF) da 1ª Região existem disponíveis muitos relatórios, muitos elogios, muitas fotografias comemorativas, muitas respostas a consultas, passos dados sobre a implantação de juizados novos, muita coisa boa que até atualmente é seguida pelos diversos colegas condutores dessa nova justiça, mais perto do povo, do jurisdicionado de menor poder aquisitivo, mas com direitos impostergáveis, melhor garantidos pelo árduo trabalho desse contingente de valorosos colegas juízes.

     

    Encerramento do Estágio Profissional, requisito para formatura como Professora Primária, em dezembro de 1969, pelo Instituto Central de Educação Isaías Alves (ICEIA/SSA/BA) - Curso Pedagógico. FOTO: ASCOM-TRF1/Proforme

     

    3) Quais as dificuldades que a Senhora já enfrentou?

    Posso afiançar sem medo de errar que meu jeito de ser confiante, alegre, disposto e disponível para o trabalho fez com que eu ganhasse de imediato inúmeras adesões, ou seja, muita gente sempre gostou de mim, reconhecia meu valor e me respeitava demais, fatos esses que de certo modo facilitaram o exercício de meu trabalho. Sempre tive muita sorte nesse aspecto, nunca sofri desrespeito, vergonhas públicas, desmerecimento que eu pudesse registrar. Mas quando acontecia alguma coisa nessa seara que merecesse pronta resposta ou uma atuação mais enérgica, eu estava pronta, preparada para agir com firmeza. Sempre procurei não acusar o golpe, passar com muita classe sobre as dissensões, com tamanha categoria que nem sei onde foi que aprendi tudo aquilo, já que era uma pessoa de níveis econômico, social e financeiro que deixavam a desejar, tendo estudado a vida inteira em colégios públicos!!!

    Falar de dificuldade que eu tenha enfrentado, eu acho um pouco difícil. A gente se debate entre dificuldades de todo lado, sejam de espaço, pequeno número de juízes e de servidores, excessivo número de processos, dificuldades em geral para o alcance das metas funcionais e de nossos próprios objetivos. Eu tinha família em Salvador e fiquei por 14 anos em Brasília. Tendo três filhos, ainda bem (ou ainda mal?) que não era mais casada, senão teria que ter deixado marido e ficar na ponte aérea para outro estado. Tive essa dificuldade principal de afastamento da minha família e outras absolutamente normais como todo e qualquer juiz enfrenta. Na 1ª Região, especificamente, a dificuldade maior era com o grande número de processos. Uma coisa avassaladora! Eu pertenci à 1ª Seção durante anos e tinha no acervo a matéria mais numerosa da 1ª Região, tanto previdenciário, quanto administrativo referente a servidor público civil e militar. Eu creio que quando se pergunta sobre as dificuldades que eu enfrentei, pessoalmente, a referência visa também indagar sobre o fato de eu ser mulher, negra, de origem humilde, nordestina... Tenho, com relação a isso, não sei quantos relatos a fazer!!! Mas alguns são tão sofridos, mas tão sofridos, que eu não me sinto à vontade para relembrar e repassar. Principalmente porque estou em processo de exercitar o perdão. Penso que se eu não perdoar as mágoas das quais fui vítima, não poderei alcançar o perdão pelas mágoas que causei.

    Existem algumas situações das quais posso falar, ainda na 1ª instância. Mesmo trabalhando em Salvador, a capital do Estado de maior população negra do País, enfrentei, em mais de uma oportunidade, advogados, ou mesmo partes nos processos - porque às vezes eu atendia partes que vinham de lugares distantes, e meu gabinete estava autorizado a facilitar esse diálogo – que adentravam ao meu gabinete, trazidos pelo atendente, e diziam: “Não! Eu quero falar é com o juiz”. Daí o atendente respondia “Mas é ela, a juíza da causa é ela, a doutora Neuza”. A pessoa respondia “É ela? Eu não sabia que era mulher”. Na verdade, estavam estranhando o fato de eu ser mulher e negra. Isso aconteceu mais de uma vez e num primeiro momento chocou, mas depois eu passei a tirar “de letra”.

     

    No Memorial Mauro Leite Soares, acompanhada do Presidente do TRF1, recebendo as homenagens prestadas com a aposição de sua Toga de Gala em exposição permanente, retrato e placa alusiva ao fato de ser a primeira mulher negra a compor a Corte. FOTO: ASCOM-TRF1/Proforme

     

    4) A Senhora já sofreu alguma dificuldade ou agravamento especial na profissão por ser mulher?

    Eu fui para a Comissão de Concurso de Juiz Federal no meu Tribunal unicamente quando fui presidir essa Comissão, por ser uma prerrogativa regimental, já que empossada Vice-Presidente. Não fosse isso, eu não teria sido lembrada. Por que será? Será que é porque eu era mulher? Talvez! Não sei dizer se alguma comissão de concurso anterior indicada pelo Tribunal teve alguma mulher, independentemente do fato de ocupar cargo na Mesa Diretora.... Também temos tão poucas mulheres compondo como titular o Tribunal da 1ª Região... E sempre foi assim; creio até que nunca houve mais de cinco mulheres compondo o quadro de desembargadores como titulares, ao mesmo tempo! Então, eu não era lembrada para as comissões tidas como importantes. Eu não posso atribuir isso, peremptoriamente ao fato de ser mulher, ou ao fato de ser mulher negra. Mas certo é que tendo ingressado no Tribunal em 17 de dezembro de 2004, até quando eu me despedi, por aposentadoria, eu fui convidada apenas para compor uma comissão que ninguém queria, no Acervo Documental que todo mundo chamava de “Comissão de Descarte” sem atribuir relevância ao trabalho.

    Com paciência, consegui convencer a todos de que não era uma “Comissão de Descarte”, mas tratava-se, isto sim, de gerir nossos processos findos, atender determinações legais quanto à destinação dos que já haviam cumprido sua utilidade, dar uma destinação digna, útil, inclusive para doação a grupos organizados de reciclagem. O processo passou a ser tratado para poder compor arquivos, ficando somente o que era obrigatório ou de valor histórico.

    Apenas quando eleita Vice-Presidente, e por prerrogativa expressamente estabelecida no regimento interno, eu participei da Comissão do último concurso público para o cargo de Juiz Federal Substituto, na condição de presidente. Não posso garantir, mas me arrisco a apontar isso como uma das dificuldades enfrentadas pelo fato de ser mulher.

    Por outro lado, na hora de me posicionar dentro dos debates, se eu não insistisse muito, se não falasse mais alto, se não reclamasse do fato de que não estavam me deixando expressar meu entendimento, não teria sido feliz, como fui... Por diversas vezes fui interrompida e eu tinha que chamar o presidente da Sessão “às falas”, reivindicar cumprimento de regras do regimento, sob pena de, não agindo assim, não conseguir me impor. Isso funcionou durante algum tempo como um freio para minhas manifestações, um impedimento, um receio de acontecer alguma coisa que viesse a me maltratar.

    Entretanto, com o passar do tempo, criei algumas estratégias que foram muito importantes. Aprendi, por exemplo, muitos sinais taquigráficos. Anotava algumas coisas das falas dos outros colegas, com as quais eu fosse discordar ou concordar, registrava tudo, e quando tinha oportunidade de me expressar - fosse na hora do voto ou no debate - eu fazia isso com muita propriedade porque tinha ali, na minha mão, a exata expressão do que havia sido dito, o ponto que para mim era relevante, a premissa sobre a qual eu me debruçaria para defender o entendimento, qualquer que fosse a direção. Priorizava os termos em que faria progredir o meu voto. E isso deu uma substância muito grande aos meus pronunciamentos, fez com que conquistasse mais respeito, senão de todos, pelo menos da grande maioria.

    As pessoas passaram a parar para ouvir o que eu dizia e muitas vezes eu conseguia até transformar em convergentes, votos que antes eram divergentes. Desse modo, consegui ajudar muito não só em Turma, como em Sessão e em Corte Especial Administrativa ou Judicial.

     

    Toga normal de trabalho usada no dia a dia das sessões, fossem de Turmas ou de Seções. FOTO: ASCOM-TRF1/Proforme

     

    5) O que é, a partir da experiência da Senhora, ser juíza federal?

    Ser juíza federal e depois ter vindo a me tornar desembargadora federal no Tribunal Regional Federal da 1ª Região é uma experiência dignificante, uma profissão que me completa, que me deu condições de prover as minhas necessidades e ajudar minha família, sempre com renda única proveniente do meu salário como magistrada. Sempre consegui fazer valer minha autoridade sem ser prepotente, convencer com argumentos palatáveis. Considero uma experiência fantástica! Indescritível!

    Minha experiência como juíza federal não dá para ser esquadrinhada em um espaço pequeno. Para mim, exercer o cargo de juiz federal significou um desafio diário e constante! Dia após dia, ano após ano, com a responsabilidade acrescida de fazer o melhor que eu pudesse para contribuir, desse modo, não só para a formação de jurisprudência, como para a distribuição, com equidade, da Justiça que cada um veio buscar quando se dirigiu à Justiça Federal, seja na 1ª ou 2ª instâncias.

    Ao tempo em que algumas pessoas possam considerar que exista uma divinização da figura do magistrado, eu enxergo ainda o lado da cobrança, da exigência de você ser bom naquilo que faz, você ser estudioso, ser criterioso, ser justo acima de tudo. E o modo que eu encontrei para tornar mais fácil a tarefa de realizar tudo isso foi utilizando, nas minhas fundamentações, uma linguagem que qualquer pessoa entendesse o que eu queria dizer. Nada de linguagem rebuscada, nada de palavreado, citações de estudiosos de outras línguas, elucubrações... Eu sempre tive uma linguagem muito clara. Eu treinei isso! Eu sei que sou fruto dos ensinamentos e vivo sob a influência dos diversos estudiosos do Direito, julgadores, pensadores, doutrinadores, a respeito dos princípios gerais do Direito, as premissas, as prerrogativas, “issos” e “aquilos”, mas eu disse a mim mesma: “o jurisdicionado, quando bate à porta da Justiça com uma demanda, ele quer a solução. Quando eu tiver que fazer trabalhos rebuscados eu vou escrever um artigo, vou escrever um livro, vou publicar matérias, eu vou fazer alguma coisa no campo acadêmico, porque sentença, acórdão, decisão judicial lato sensu ou stricto sensu, se faz é no bom e claro português, que qualquer pessoa entenda o que foi concedido, o que foi negado e o que é que deve ser feito dali em diante; nada de ficar andando em círculos. É premissa maior contra premissa menor, bater uma contra outra, analisar provas, fazer a síntese e ir em frente; fazer com que nosso trabalho seja entendido e respeitado”.

    Para questões iguais, decisões iguais. É claro que isso dentro das possibilidades, porque segundo entendo existem teses iguais, situações semelhantes, mas uma causa exatamente igual à outra, ainda mais nessa área Previdenciária e do Direito do Servidor Público, Civil e Militar é muito difícil de encontrar. As variáveis são muitas: se é homem, se é mulher, qual a idade que tem, o período que foi trabalhado, entrou em que ano, se naquela ocasião era casado ou era solteiro... Uma série de coisas que tem que ser levadas em conta na hora de dar uma decisão que envolva esses detalhes. Por isso que eu digo que não tem um proces

    so exatamente igual ao outro. Dentro do possível, temos de firmar entendimentos e só mudar quando efetivamente nos convencermos de que aquelas realidades são muito distintas, ou se o STF ou o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmarem um entendimento contrário à tese que eu, enquanto julgadora, admitia. Sendo assim eu diria “Apesar de entender de forma diferente, curvo-me ao entendimento majoritário do STF... ou do STJ...”. Na medida em que eu fundamentasse bem a minha decisão e dissesse onde busquei esses fundamentos, minha tarefa estaria satisfatoriamente cumprida.

     

    No Salão Nobre do TRF1, em 2012, proferindo discurso ao tomar posse como Coordenadora do Juizados Especiais Federais da Primeira Região, composta de 14 unidades da federação. FOTO: ASCOM-TRF1/Proforme

     

    6) Como é administrar uma Seção ou Subseção Judiciária?

    No período em que eu fui chamada para administrar na Justiça Federal, ainda na 1ª instância - administrei a Seção Judiciária da Bahia -, era um momento que a Justiça Federal estava crescendo, muita coisa dependente do comando de Brasília, quase tudo tinha que ser perguntado, quase tudo tinha que aguardar autorização para ser feito. Mas a gente tem que entrar no sistema. Se você não pode sozinho pensar e fazer, por conta da necessidade de aguardar outros comandos, tem que ser assim, e tem que ter criatividade para fazer da melhor forma a série de tarefas sob sua responsabilidade: administrar interesses de juízes e de servidores, prestadores de serviço, estagiários, todas as questões atinentes ao Tribunal e, ao mesmo tempo, as demandas sociais e ainda atender a imprensa, seja a mídia escrita ou a televisionada... Não é fácil, entretanto é possível com a ajuda e a compreensão principalmente dos colegas. Tive muito trabalho, mas bastante êxito, e é muito bom olhar e ver que você fez, realizou, quantas equipes uniu, o quanto ajudou a sua Seção ou Subsecção Judiciária a dar um passo à frente. Problemas existem, mas todos solucionáveis.

    Despedindo-se de servidores, estagiários, prestadores de serviços e colegas, em setembro de 2017, oportunidade solicitada diretamente ao Presidente do TRF1, e atendida, em Corte Especial. FOTO: ASCOM-TRF1/Proforme

     

    7) Na opinião da Senhora, é possível conciliar a atividade profissional, acadêmica e familiar?

    Não exerço o magistério, pois a magistratura me dominou do princípio ao fim e a função de ensinar formalmente ficou contida, postergada Não pude exercer essa tarefa porque além de tudo eu me cobrava demais, sabia que não podia errar, entendia que todos os olhos estavam em cima de mim, principalmente por ser mulher, por ser negra, por ser nordestina, por ter simplicidade no olhar, no andar, no vestir, no conversar! Eu me protegia, talvez até exageradamente, procurando trabalhar, trabalhar, trabalhar, levar trabalho pra casa, reunir com as equipes e motivá-las, verificando de que modo poderíamos solucionar problemas que o Tribunal não poderia ajudar - ou por falta de condições ou porque achava que teria que fazer a mesma coisa pra todo mundo e não teria condições de atender nossos pleitos, isoladamente.

    Então, com relação a conciliar atividades profissionais e familiares, eu não tive muitos problemas. Minha família sempre foi muito compreensiva em relação às minhas ausências. Sempre me estimulou, sempre me apoiou, mesmo à distância. Eu morava em Brasília sozinha. No início, meus filhos me acompanharam, principalmente a filha mais velha, que ficou três anos comigo, mas não se deu bem. E vejam só: essa minha filha não era da área; ela fez o curso de Análise de Sistemas. A minha filha do meio, que fez Direito, me deu uma lição de vida maravilhosa, e disse que eu teria sido sua professora na matéria... Ela disse “Minha mãe, eu não vou pra Brasília. Eu sou advogada, e a senhora é desembargadora. Eu posso até me dar muito bem lá. Muitos escritórios vão disputar a minha presença, vão me dar trabalho, e eu posso até ganhar muito dinheiro, talvez ganhar melhor do que você, mas lá eu serei a filha da Doutora Neuza. Em Salvador, mesmo que seja em um escritório que tenha apenas uma porta, sem janela, que eu tenha de ser também a atendente do telefone, mesmo que seja assim, eu serei Aldine Alves, a advogada Aldine Alves. Não serei “somente” a filha da Doutora Neuza. Não que eu queira esnobar o nome da senhora, mas tenho de me firmar pelos meus próprios pés, tenho de dizer a que vim. Não vou ficar me escudando no seu bom nome, na sua boa fama. A senhora não pode me ajudar nesse ponto. Permaneça em Brasília, seja feliz, eu vou voltar pra Salvador e vou tentar minha vida lá”.

    Sempre conciliei muito bem essas questões. É claro que batia saudades, que às vezes quando eu ia para Salvador, eu demorava a entender que tinha que voltar. Às vezes eu não queria. Não poder viver muitas coisas que acontecerem dentro da minha família foi duro; eu não vi batizados, não vi crismas, não vi algumas formaturas de parentes, de amigos, não acompanhei os primeiros namoros de minhas filhas. Quando eu fui pra Brasília, eu já estava separada havia cinco anos e isso foi muito difícil! Mas pude, ao fim, me considerar vencedora nessa parte, por que ninguém ficou magoado, pelo menos não temos registro disso. Eu sei que é difícil, foi difícil, mas ao final consegui conciliar porque, embora não exercesse função acadêmica, eu era magistrada, mãe, amiga, filha, irmã, parente, tia, sobrinha, prima, namorada, e consegui deixar todas essas funções em sintonia.

    Tomando Posse como Vice-Presidente do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, em 25 de abril de 2014, para o biênio 2014/2016. FOTO: ASCOM-TRF1/Proforme

     

    8) Qual a mensagem que a Senhora pode deixar para as mulheres que sonham ou já sonharam em seguir a carreira?

    A única coisa que eu posso dizer não é válida somente para quem é ou sonha em ser magistrada, mas para quem tenha sonhos. Ninguém pode tirar o sonho da gente! Dentro de um panorama realista, é possível sonhar e transformar esse sonho em realidade. Difícil sim, muito difícil, e não está só na dependência de qual é o sonho e sim de como você está naquele momento, quais são as condições que você tem para fazer aquilo se tornar realidade. Trazendo agora mais especificamente para a magistratura, eu entendo que ser magistrada é uma experiência tão sublime, tão enriquecedora que as pessoas depois que entram na carreira fazem, nos primeiros anos, um treinamento que não é só técnico, é antes de tudo emocional. O magistrado, de modo geral, tem que entender que a sua missão é quase sagrada, mas para que a exerça por inteiro e venha a alcançar os objetivos da magistratura, tem que ter uma postura de leveza. Principalmente ela, a magistrada, tem que entender que não é uma cara feia nem um murro na mesa que vão resolver questões como preconceito, como falta de respeito, ou tentativas de diminuir, no caso, uma magistrada ou a magistratura.

    Nem todo mundo tem condições de fazer como eu fiz, mas acho que não é impossível entender a postura do outro e absolutamente, sem baixar a cabeça a possíveis tentativas de domínio, de diminuição de quem nós somos, reagir positivamente. Eu me coloquei a vida toda num ponto superior a essas coisas menores, essas coisas que tenho como pequenas. Exercitei uma espécie de piedade sobre esses comportamentos, nunca aceitei nenhum, mas também nunca fiz alarde, sempre tive uma postura muito decidida, mas acima de tudo pacífica. É difícil explicar, é muito difícil explicar e a minha opção, fatalmente, não é a mesma da maioria. Sendo de origem humilde, passei pela escola da vida muito cedo. Não convivi com meu pai, meus irmãos homens saíram de casa muito cedo, a figura masculina na minha vida não teve um lugar de destaque. Então, durante muito tempo eu tive que dominar os meus ímpetos de autoritarismo. Não foi fácil, mas consegui. A primeira coisa que você tem que fazer quando quer alcançar um objetivo é dominar a si próprio, dominar suas reações, entender os seus limites e, com certeza, o limite do outro que está interagindo com você. Consegui fazer muitas amizades, conquistar o respeito de diversas classes, diversas categorias, dos jurisdicionados, dos procuradores, advogados públicos e advogados privados, dos meus colegas, dos meus superiores hierárquicos, desembargadores mais antigos, ministros, dirigentes. É que eu sempre respeitei muito a individualidade dos outros e não deixava espaço para que ninguém tentasse “fazer a minha cabeça”, dirigir meus passos, escolher os meus caminhos!!! Sempre tive um comportamento altivo, mas ao mesmo tempo cordial. Essa foi a minha grande arma para vencer uma gama enorme de obstáculos, preconceitos e pré-julgamentos.

    Sendo entrevistada em data comemorativa do Dia Internacional da Mulher. FOTO: ASCOM-TRF1/Proforme

     

    9) Este é um espaço livre para a Senhora deixar alguma mensagem ou falar sobre algo que acredite que não tenha sido contemplado nas perguntas anteriores.

    Eu considero a carreira da magistratura sublime, única, e eu faria tudo de novo. Entretanto queria trazer um ponto para reflexão que vai servir também como minha palavra de estímulo, incentivo e conselho às magistradas, tanto as que iniciaram na carreira há algum tempo, as que estão iniciando agora e as que pensam em começar.

    A magistratura exige uma dedicação quase exclusiva, mas é preciso dividir tudo na devida proporção. Sanear as áreas em conflito para que cada um dos papéis da magistrada seja exercido com maestria, é a grande tarefa que a vida nos impõe! E isso não se faz de uma hora para outra, isso se aprende com o tempo... Eu não atentei muito para os cuidados pessoais, não fiz atividades físicas, não cuidei muito do meu lado amoroso. Quando completei 10 anos de magistratura, meu casamento ruiu e eu nunca mais refiz por inteiro minha vida afetiva. Para mim, é um dos meus pontos negativos porque foquei demais na profissão, cuidei da família e esqueci de mim. Entrei numa vida sedentária e nunca mais saí. Adquiri hérnias de disco que lesionaram a minha medula, porque elas crescem depositando calcificação para dentro do canal medular. Senti dores terríveis e quando fui procurar cuidar já era caso cirúrgico. Por isso, fiz três cirurgias e perdi o equilíbrio físico. Então, posso dizer que é meu sonho ver mulheres na carreira da magistratura que saibam, com uma definição bastante segura, o tamanho da sua responsabilidade, mas ao mesmo tempo se permitam ter prazer e aproveitar o que de bom a vida possa lhes oferecer. Mulheres que se sintam valorizadas, mas ao mesmo tempo, verificando que no universo, nós, seres humanos, somos pequeninos e não devemos admitir atitudes que humilhem os menos favorecidos, comportem-se de acordo com esse entendimento. Reflitam sobre ser, nossa escolha pela Justiça, influência para a vida por inteiro. Que reconheçam, no trato com servidores, estagiários, terceirizados, partes e seus advogados, oportunidade de demonstrar lhaneza e elegância. Penso eu que nós magistrados não somos nada sem o apoio de todo esse staff que vem, ao longo do tempo, emprestando a sua força de trabalho ao exercício da nossa profissão. Já imaginaram se um juiz tivesse que, ao mesmo tempo, conduzir uma audiência, digitar os depoimentos, procurar processos em salas de audiência, fazer relatórios, atender aos telefonemas? A gente não é nada sem a ajuda dos servidores do Judiciário, servidores no sentido amplo.

    Quero deixar registrado que a pessoa que está aqui hoje recostada, utilizando aparelhos ortopédicos, sentindo dores, poderia estar em situação melhor se tivesse se cuidado mais, se tivesse organizado melhor sua vida e reservado uma hora para praticar esportes, uma hora para cuidar de casa, para conversar com os filhos, namorar o marido e se permitir ser cuidada também! Eu acho muito importante esses dois lados para que a gente seja cada vez mais livre, mais inteira, mais consciente e, acima de tudo, mais feliz!

    Ser magistrada não significa apenas enfrentar sacríficos e rebater acusações falsas. Exigência grande a sociedade tem para conosco, mas a gente também tem que ser exigente com tudo. Reservar um tempo pra si mesmo. Um conselho que eu dou: para fazer cada vez melhor, invista na sua felicidade! Uma mulher magistrada feliz vai ser muito mais útil à sociedade, ela vai ser mais presente em sua família, vai estar mais disposta em seu dia a dia, terá melhor capacidade de planejamento, será mais cordial com seus colegas, servidores, e terá mais amigos. É isso: felicidade a todos, um grande abraço e viva a magistratura!!!

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